O verdadeiro Tadzio

O livro “A Morte em Veneza” foi publicado em 1912 por Thomas Mann. É a sinfonia do declínio; a poesia da decadência, num mundo perfeitamente imutável e confiante. A narrativa converge em simbologias e paradoxos variados como antecipando a tragédia. A morte anunciada não é apenas o desaparecimento físico do protagonista mas a impossibilidade de alcançar o objecto desejado. A beleza assume a forma absoluta inalcançável. Aschenbach, o protagonista, é a representação do próprio autor, embora tanto comungando traços físicos com o então recém falecido Mahler, como também elementos biográficos com Goethe. O filme de Visconti foi argucioso no paradoxo, onde a sinfonia do compositor austríaco conduz a poesia dos acontecimentos. Mann é um classicista e as referências à mitologia logram a virtude de servir de arrimo às vicissitudes do drama. Alter ego ou apenas reflexo ideal do próprio autor, Aschenbach serve de halo à interpretação do espírito criativo. Mann procurava interpretar o sentido das ideias e entender a criatividade, no que mais tarde chamaria “romance de ideias”, ou como Yourcenar chamou “romance filosófico”.

Mas Morte em Veneza é mais do que uma especulação intelectual. Se Aschenbach é inspirado em Mahler (quando não um realce do próprio Thomas Mann), Tadzio é também inspirado numa pessoa real, como o livro de Gilbert Adair, “The Real Tadzio” já tinha antecipado. O nome do verdadeiro Tadzio era Władysław Moes, nascido no seio da aristocracia polaca em 1900 (faleceu em 1986 em Varsóvia), o que significa que ao contrário do jovem de 14 anos do livro o rapaz por quem Mann se fascinou não teria mais de 11 anos (weird!). A personagem literária, espécie de “Lolita gay”, não pode ser reduzida ao mero desejo sexual – por isso não compararia de forma tão objectiva à obra que décadas mais tarde Nabokov vai escrever – mas talvez reconduzido a uma espécie de desejo impossível.

Homoerótico ou simplesmente a sensualidade da alma, mais do que o desejo do corpo é o subterfúgio da sexualidade de Mann (um homossexual no armário a reprimir um desejo jamais conseguido) entendida através dos paradoxos e imagens criadas. Contudo seria simplista rotular como uma espécie de novela gay (não querendo entrar em rótulos comparando a um Call me by your name em versão Belle Époque…), implicaria entrar em interpretações abusivas… o fascínio não está no sexo, porque não se trata de possuir o objecto amado, mas de desejá-lo enquanto idealização do espírito. Talvez à maneira de como Camões, inspirado em Petraca, poderia supor “transforma-se o amador na cousa amada”. Porque aquele que deseja passa a assumir-se como objecto do próprio desejo. E esse objecto, inalcançável, torna-se motor inconsequente do declínio. Mas também a impotência face a esse desejo e a fatalidade que está para além do entendimento humano.

Durante anos Moes viveu ignorante do contributo que tivera para a literatura. Uma musa inesperada e infantil longe de compreender a influência que tivera no escritor alemão. Aliás, o primeiro contacto que teve com o livro foi em 1924, quando um dos primos deu a conhecer a tradução polaca de “A Morte em Veneza”. O estranho paradoxo não fascinou um jovem aristocrata mais entretido com o luxo dos salões do que com a literatura. Mas se ignorou o facto, não o esqueceu. Em 1947 Erika Mann (filha do escritor) recebe uma carta Moes, onde este descreve o divertimento que sentiu ao ler a novela: não tinha a menor dúvida de que o Tadzio do livro era ele mesmo. Em 1964 comentou com o tradutor polaco da obra de Thomas Mann, Andrzej Dołegowski, ter servido de inspiração a Tadzio e mais tarde foi entrevistado por um jornal alemão curioso pela notícia. Em 1971 está em Paris onde assiste à adaptação do livro para cinema por Visconti, tornando-se um ícone ao ser interpretado pelo jovem Björn Andrésen.

Wladyslaw Moes ao centro com os irmão de férias em Veneza, Thomas Mann conheceu-o por esta altura (1911)

A biografia contudo guardou toda a tragédia do século. Enquanto Mann se celebriza como escritor, Moes irá viver todo o drama do século XX. Herdeiro de uma grande fortuna, aristocrata, encontra-se no epicentro geopolítico que configura o “suicídio da Europa” e a destruição do velho mundo. Lutando contra nazis e soviéticos, acaba perseguido por ambos: traidor face aos primeiros por ser um patriota polaco que recusa a ocupação e a ideologia perversa do nazismo; preso pelos segundos por ser um “Inimigo de classe” e acreditar na independência polaca. As vicissitudes da história elevam-no muito para além dos doces anos da vida aristocrática. O mundo que Mann imortalizou em Morte em Veneza passou a ser um artefacto de museu, que em muito estaria ultrapassado não fosse a capacidade inventiva do autor.

Wladyslaw Moes, 1900-1986