Dostoievski morreu a 9 de Fevereiro de 1881. Para a história ficou a imagem de um artista atormentado com a própria existência. No retrato imortalizado por Vasily Perov o perfil austero e sofrido do escritor vem acentuado pela profundidade do olhar, onde o poeta vem confundido com o profeta. Se Tolstoy delapidou a decadência da sociedade luxuosa e compreendeu os paradoxos do sentimento, Dostoievski penetrou nas confluências do pensamento e interpretou a latitude das acções. Terá antecipado o modernismo, na construção de narrativas que importam com o fluxo de consciência e, como não deixou de reconhecer, afirmou-se como legítimo herdeiro de Gogol, pela forma como traçou o absurdo da nossa existência, estilo mais tarde retomado por Kafka. Seria ainda para os autores do século XX, o primeiro existencialista. Podemos ler Tolstoy e compreender o século XIX, mas ao lermos Dostoievski alcançamos a intemporalidade. O tempo histórico dissolve-se no subterfúgio da mente e no labirinto das ideias.
A admiração por Dostoievski é transversal a sensibilidades e ideologias dada a sua complexidade: foi o revolucionário e o reacionário ao mesmo tempo; o universalista e o nacionalista; o homem em conflito de fé, o niilista, mas também o ortodoxo e o religioso.
A conversão do escritor é motivo de discussão. O jovem socialista utópico sofreu uma deriva que o fez alterar a perspectiva no mundo. É verdade que a experiência de uma década na Sibéria divide a vida de Dostoievski entre o pensador do radicalismo e o conservador ortodoxo. Mas não explica tudo, ainda que contenha muitas das respostas para entender a evolução intelectual. O Dostoievski dos anos de 1850 ainda não era o “reacionário” que a história registaria, a evolução seria paulatina e acentuada pelas vicissitudes biográficas. Partindo do ano de 1846, quando publica o livro “Gente Pobre”, até 1849, o pensamento político do escritor desenvolve-se e transforma-se.
Nos bons anos do reinado de Alexandre II, Dostoievski apoia as “grandes reformas” (assim chamadas). Aproximava-se das correntes liberais, embora não seja totalmente correcto designá-lo como tal, no mesmo sentido que um rival das letras como Turgueniev poderia ser considerado. Independentemente das ideias, o optimismo era transversal. Contudo, após o assassinato do Czar abate-se sobre grande parte da inteligência um pessimismo agudo. A “era das grandes reformas” encerrava o seu ciclo e precipitava a era reacionária de Alexandre III.
Como outros intelectuais do Império, Dostoievski evoluiu para o conservadorismo ortodoxo e a apologia da autocracia. Aconteceu assim com outros ex-liberais eslavos, Mikhail Katkov, Aleksey Suvorin, Pobedonostsev (que terá servido inspiração para o Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov”). O pessimismo vinha agravado do sentimento de ameaça que o niilismo e a intelligentsia revolucionária arrastavam, em romances imortais como “Crime e Castigo” e “Demónios”, Dostoievski apanha essa mesma apreensão.
Os paradoxos do pensamento de Dostoievski conflituam com uma personalidade energética, onde o drama biográfico se confunde com a obra. É tão romântico e tão trágico como as personagens que desenvolveu; e os dramas que viveu foram tão intrincados quanto as narrativas que soube elaborar. Politicamente, foi um reformista que, no reinado de Alexandre II, apoia a libertação dos servos e a reforma da justiça, talvez dois dos maiores feitos que acompanham a grande onda legislativa desses anos, no mesmo sentido é um defensor da liberdade de imprensa.
No final de 1859, com o cessar da era reformista, Dostoievski aparece como um “humanista cristão”, um nacionalista russo que se opõe quer à utopia socialista, quer ao liberalismo, um crente na reconciliação entre classes sociais e um crítico da ocidentalização. Talvez antevisse uma espécie de “terceira via” entre a ocidentalização procurada pelos intelectuais do liberalismo e o niilismo e o socialismo utópico transportadas pela nova geração. Em suma, um conservador de acordo com o “modelo moscovita” que acredita que o Czar encarna as aspirações do povo russo. Seria simplista rotulá-lo apenas de “reacionário” ou “conservador”, um seu biógrafo, Alexandre Gibbson diria que as suas ideias sociais aproximavam-se da solidariedade que nasce da comum participação numa cultura religiosa total. Este ideal encontrava-se na “sobornost”, o ideal de cooperação entre as pessoas de uma comunidade alicerçada em fortes sentimentos religiosos.
Nos anos finais Dostoievski poderia ser catalogado na definição de Schmitt, de um “pessimista antropológico”. A experiência de juventude e as mundividências de uma vida romântica e trágica deixaram as marcas permanentes.
É um homem desencantado, que antevê a história como um grande dilúvio; e as paixões inconsequentes pelas ideologias como um anúncio de catástrofe. Mas foi sobretudo um artista que soube como nenhum outro mergulhar no mais profundo da existência humana.