A Idade da Inocência

Edith Wharton (1862-1937) terá sido uma das últimas grandes cronistas dos doces anos da Belle Époque, para o standard britânico uma eduardiana, para os Estados Unidos uma observadora talentosa da Gilded Age. Em Wharton conflui a tradição americana com o espírito aristocrático europeu, produzindo assim a prosa mais cristalina e, ao mesmo tempo, a mais mordaz, com toda a força emprestada à satírica composição francesa e a objectividade do espírito americano. Se para um português é quase impossível dissociá-la de um estilo ao nível de Eça de Queiroz, como para um francês um Flaubert, na verdade Wharton consegue ser mais incisiva e as observações têm um requinte crítico que não perde a graça.

Edith Wharton, c. 1895.

Quando publicou The Age of Innocence o mundo já sucumbira a novas calamidades. Proust fechou-se no apartamento de Versalhes, enquanto Foster abdicou da imaginação. Aquele edifício magnífico, que todos acreditavam imutável, sucumbira nos anos da Grande Guerra. Escrever uma crónica dos anos de 1870 em 1920 poderia parecer um exercício masoquista de nostalgia aguerrida, o que não é de todo verdade. Wharton não é uma pessimista, nem uma nostálgica (e bem mereceu ser a primeira mulher a ganhar o prémio Pulitzer com este grande romance). Poderia ter petrificado nesse velho mundo, ou vertido lágrimas pela civilização passada, mas, muito pelo contrário, existe uma expiação, procurando mais interpretar do que acusar, mais analisar do que verter lágrimas sofridas. A Idade da Inocência pode ser um adieu breve ao passado que conhecera, mas é também a insatisfação de uma mulher indomável. Wharton estava muito mais à frente do que os seus contemporâneos. A “inocência” que o título invoca nada deve à nostalgia, mas à cristalização desse mesmo mundo que Stephan Zweig, nostálgico, lembrará nas memórias do pós-guerra, uma sociedade estratosférica que gravitava na inconstância da mudança. Como uma criança indiferente a sociedade caminhava sobre solo movediço. A redoma de luz em que muitos cresceram estilhaçou-se no espaço de décadas.

Referir uma característica tão inata como a “inocência”, ou a ingenuidade, ou a infantilidade, parece um paradoxo entre a inevitabilidade do devir histórico e a lacónica passividade dos homens, também remete para o drama que o próprio enredo do livro encerra. O enquadramento histórico não podia ser mais notório. Estamos na década de 70’s (do século XIX entenda-se), na sociedade da velha Nova York, já no rescaldo da Guerra Civil e na ascensão de novas famílias endinheiradas (o chamado new money), onde talvez um Julius Beaufort pudesse representar as características, distinguindo das antigas dinastias originárias ora do tempo colonial, ora da própria fundação da república americana (o designado old money), no livro representado pelos van der Luyden. Importante esta compreensão, no livro cada personagem representa não apenas uma posição social, mas também desenvolvem posições éticas e morais determinantes.

A paixão entre Newalland Archer e a condessa Olenska é de uma arquitetura excepcional. A inocência de uma geração que desperta para a dualidade dos mundos fica patente. Mesmo na estratosférica alta sociedade novaiorquina os problemas assolam aos mais incautos. Os casamentos arranjados como preservação do status, as alianças entre famílias como condição do prestígio, o laborioso mundo de códigos e regras criados para manter a boa sociedade recolhida na redoma dourada onde sempre existiu. Aqui entra o modernismo de Wharton também, a capacidade em colocar-se em diametral oposição entre dois mundos, o antigo e o novo, e extrair a partir do subconsciente de cada personagem uma condição para explicar as vicissitudes do pensamento, o declínio do desejo e as intempéries da aventura. A autora não fecha as personagens em torno de si mesmas, o romance não circunda em torno do mesmo eixo de forma inconsequente, há uma evolução, seja nas acções ou nos pensamentos, ou nas emoções. Archer, o protagonista, não corresponde a um protótipo de cavalheirismo vitoriano, antes representa uma humanidade por detrás da fachada social. A partir dele Wharton expõe criticamente o cinismo e hipocrisia que dominam a sociedade.

A entrada de Archer na grande opera de Nova Iorque ao som do Fausto de Charles Gounod revigora a simbologia do drama e toda a narrativa parece igualar a intensidade da orquestra até ao desfecho final. Quem viu a adaptação cinematográfica de Scorsese (de 1993) consegue visualizar toda a riqueza poética que o momento envolve, aliás adaptação bastante fiel à narrativa e delicioso na recriação histórica. A escrita detalhada e objectiva da autora quase antecipa a técnica cinematográfica. Dos bailes aos momentos de lazer, permanece a visão cristalina de um mundo eclipsado. O jantar refinado na casa van der Luyden é um exemplo desse refinamento literário que procura envolver o leitor nos sabores da alta sociedade. O jantar é planeado em honra à condessa Olenska (após uma primeira tentativa fracassada de a reintroduzir na boa sociedade novaiorquina), que chega atrasada sem entender o inconveniente e, mais tarde no serão, abandona o duque de St. Austrey com quem falava para se dirigir a Archer, completamente alheada dos protocolos da sociedade. Wharton consegue ser astuciosa no enquadramento da narrativa, os cenários são sólidos e os detalhes deliciosos (à boa maneira da literatura francesa). Olenska serve se arrimo à visão crítica da autora, um terramoto face às convenções, uma visitante indesejável de um continente longínquo que assombra a pacatez de um mundo intocável pela mudança.

The Age of Innocence (1993)
Directed by Martin Scorsese
Shown from left: Michelle Pfeiffer, Daniel Day-Lewis

É tudo tão banal que acaba por se tornar sublime. Archer está noivo de May Wellende, cuja imagem aos seus olhos simboliza a segurança e a pureza. Mas é na Condessa Olenska que Archer descobre uma realidade que ele próprio desconhecia e ambiciona como libertadora. A condessa por sua vez vê Archer como um mundo que ela espera recuperar e que lhe devolva a paz. Ambos estão errados. E é esse erro que torna a narrativa fabulosa. Porque Archer e Olenska não se apaixonam pela pessoa que conhecem, mas pela pessoa que imaginam conhecer e indagam perdidos na felicidade prometida quando na verdade jamais conseguem libertar-se da redoma em que se aprisionaram. Por fim, a tónica coloca-se quando ambos descobrem que nada têm em comum um com o outro. Nesse instante, quando confrontados com a dura realidade, todos os projectos parecem caminhar para o abismo. Archer suporta-se na noiva May Wellend para reagir ao naufrágio iminente de uma vida irresolúvel. May é a segurança, Olenska a aventura. Archer é o tronco que une o amor impossível e o amor aceitável. A paixão por Olenska é a mais irreal, e por isso mais apetecível, é a mais perigosa, por isso mais desejável, pois que a teimosia é sempre embarcar no desafio Si tu ne m’aimes pas, je t’aime Et si je t’aime, tant pis pour toi.

O que Wharton tem mais de fascinante na construção literária é estar para além dos ditames masculinos. Onde outrora Dickens ou Henry James denunciaram as crises e hipocrisias da sociedade agora é Wharton quem retrata os erros e vícios desse mundo que constrange as mulheres. E as mulheres que desfilam ao longo da narrativa são desafiantes porque representam mundividências muito diferentes. A mulher não tem necessariamente de ser o anjo puro do romantismo, nem a decadente e imoral Bovary ou Therese Raquin. O mundo não tem de ser apenas a preto e branco, nem a arte tem de ficar refém das expectativas. A autora procura antes uma zona mais cinzenta e complexa das relações humanas e das convenções sociais. Mas há traços comuns com os escritores que acompanha, a denúncia da hipocrisia social, das convenções labirínticas, das regras e preceitos que dominam toda uma sociedade.

No fundo, e fazendo justiça ao título do livro, é a idade infantil de uma sociedade que amadurecia, de um mundo que se julgava imutável e seguro caminhando sobre os terrenos movediços da história. É a inocência de uma geração, à qual Wharton pertenceu, que nada mais conhece do que as convenções. May pode viver uma vida inteira na ignorância de outros universos, enquanto Archer pode conviver com a dor de jamais fugir à ritualidade da vida. Tudo desaba à volta de May e Archer, enquanto tudo permanece igual. Esse mundo que Whartol recorda é a própria existência condenada de quem desejou manter a impossibilidade do desejo.

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