Céline, a voz maldita

Se precisasse de traçar o protótipo do “escrito maldito” com todo o romantismo necessário para edificar a grandeza poética dos amaldiçoados então Céline estaria no Panteão dos grandes. Não sei descrever a influência que dele recebi quando o descobri na tradução do “Viagem ao Fim da Noite”. Lê-lo é mergulhar no mais obscuro da nossa identidade. Céline e Proust são a face oposta da mesma França, e diria da mesma Europa. Se Proust vagueou nos salões da aristocracia e edificou uma prosa sustentada nos prazeres mundanos, recheando cada imagem de brilhantes ritmos de poesia, Céline conduziu-nos ao mais recôndito dos becos, às ruas da classe operária, ao decadentismo do século que amargurava entre guerras, à mordaça da insatisfação que devora as almas corrompidas pelo sacrilégio do descontentamento.


Céline foi esse poeta que não cantou heróis magnânimos, nem romantizou as paixões burguesas, nem perdeu tempo com floreados para encantar as massas, mas antes o desconforto, a miséria, os vícios, a pobreza, o desalento. Não há outra tragédia que não seja errar por um mundo que parece ter perdido todo o sentido, qual promeneur solitaire arrancado de todas as grandiloquências do passado para a modorra do mundo moderno onde é reduzido a insecto, esmagado por uma civilização inconsequente.
A passagem política de Céline foi derradeira. Do lado errado da história, dirão muitos, no sentido que se posicionou do lado das forças derrotadas, como grande para da inteligência, Maurras, Brasillach, Rebatet, Drieu de la Rochelle. Tantos e tantos. A vida de Céline foi como o século XX – viveu perigosamente e radicalmente. Dançou com as forças que gravitavam na alvorada do novo mundo, protagonizando a superação da civilização burguesa, fosse o comunismo, o fascismo ou nacional-socialismo. Como o século, viveu e sucumbiu nas intempéries que devastaram o velho mundo.


Infelizmente, para muitos, Céline continuou ( e continua) vivo. Uma silhueta que assombra os arautos do politicamente correcto dos nossos dias, daqueles que pretendem, uma linguagem lavada e polida, as novilínguas dos académicos das teorias críticas e outros dislates intelectuais. Face aos novos tiranos Céline, mesmo que não se concorde completamente com todas as suas posições políticas, continua mais livre, mais vibrante, mais irreverente do que nunca. E, se passadas décadas, ele ainda continua a assombrar, a chocar, a intimidar, é porque foi sem dúvida o maior dos escritores do século XX.

Céline anti-Proust

Férdinand Célien was the poet of decay, the anti-Proust, where others search for beauty and sentimentalism he senses the harsh reality of life, the unbearable burden of existence only refreshed by the satisfaction of the low instincts. Human suffering is on the same footing as human pleasure. There is no room for pathos in Céline’s vision. He rejects bourgeois confort and dives throughout the abyss of human despair, among the poor and neglected. Like Ezra Pound, Brasillach, Rebatet, Maurras, he supported Fascism and suffered the post-war consequences. He was a revolutionary and anti-system in his way to the apocalypse. He lived dangerously as the century. And remained the anti-hero of modern literature.

“When you stop to examine the way in which words are formed and uttered, our sentences are hard put to survive the disaster of their slobbery origins. The mechanical effort of conversation is nastier and more complicated than defecation. The corolla of bloated flesh, the mouth which screws itself up to a whistle, which sucks in breath, contorts itself, discharges all manner of viscous sounds across a fetid barrier of decaying teeth—how revolting! Yet that is what we are adjured to sublimate into an ideal. It’s not easy. Since we are nothing but packages of fetid, half-rotted viscera, we shall always have trouble with sentiment … Feces on the other hand make no attempt to endure or to grow. On this score we are far more unfortunate than shit; our frenzy to persist in our present state—that’s the unconscionable torture.”

  • “Journey to the End of the Night”

As ideias políticas de Dostoievski

Dostoievski morreu a 9 de Fevereiro de 1881. Para a história ficou a imagem de um artista atormentado com a própria existência. No retrato imortalizado por Vasily Perov o perfil austero e sofrido do escritor vem acentuado pela profundidade do olhar, onde o poeta vem confundido com o profeta. Se Tolstoy delapidou a decadência da sociedade luxuosa e compreendeu os paradoxos do sentimento, Dostoievski penetrou nas confluências do pensamento e interpretou a latitude das acções. Terá antecipado o modernismo, na construção de narrativas que importam com o fluxo de consciência e, como não deixou de reconhecer, afirmou-se como legítimo herdeiro de Gogol, pela forma como traçou o absurdo da nossa existência, estilo mais tarde retomado por Kafka. Seria ainda para os autores do século XX, o primeiro existencialista. Podemos ler Tolstoy e compreender o século XIX, mas ao lermos Dostoievski alcançamos a intemporalidade. O tempo histórico dissolve-se no subterfúgio da mente e no labirinto das ideias.


A admiração por Dostoievski é transversal a sensibilidades e ideologias dada a sua complexidade: foi o revolucionário e o reacionário ao mesmo tempo; o universalista e o nacionalista; o homem em conflito de fé, o niilista, mas também o ortodoxo e o religioso.


A conversão do escritor é motivo de discussão. O jovem socialista utópico sofreu uma deriva que o fez alterar a perspectiva no mundo. É verdade que a experiência de uma década na Sibéria divide a vida de Dostoievski entre o pensador do radicalismo e o conservador ortodoxo. Mas não explica tudo, ainda que contenha muitas das respostas para entender a evolução intelectual. O Dostoievski dos anos de 1850 ainda não era o “reacionário” que a história registaria, a evolução seria paulatina e acentuada pelas vicissitudes biográficas. Partindo do ano de 1846, quando publica o livro “Gente Pobre”, até 1849, o pensamento político do escritor desenvolve-se e transforma-se.


Nos bons anos do reinado de Alexandre II, Dostoievski apoia as “grandes reformas” (assim chamadas). Aproximava-se das correntes liberais, embora não seja totalmente correcto designá-lo como tal, no mesmo sentido que um rival das letras como Turgueniev poderia ser considerado. Independentemente das ideias, o optimismo era transversal. Contudo, após o assassinato do Czar abate-se sobre grande parte da inteligência um pessimismo agudo. A “era das grandes reformas” encerrava o seu ciclo e precipitava a era reacionária de Alexandre III.


Como outros intelectuais do Império, Dostoievski evoluiu para o conservadorismo ortodoxo e a apologia da autocracia. Aconteceu assim com outros ex-liberais eslavos, Mikhail Katkov, Aleksey Suvorin, Pobedonostsev (que terá servido inspiração para o Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamazov”). O pessimismo vinha agravado do sentimento de ameaça que o niilismo e a intelligentsia revolucionária arrastavam, em romances imortais como “Crime e Castigo” e “Demónios”, Dostoievski apanha essa mesma apreensão.


Os paradoxos do pensamento de Dostoievski conflituam com uma personalidade energética, onde o drama biográfico se confunde com a obra. É tão romântico e tão trágico como as personagens que desenvolveu; e os dramas que viveu foram tão intrincados quanto as narrativas que soube elaborar. Politicamente, foi um reformista que, no reinado de Alexandre II, apoia a libertação dos servos e a reforma da justiça, talvez dois dos maiores feitos que acompanham a grande onda legislativa desses anos, no mesmo sentido é um defensor da liberdade de imprensa.


No final de 1859, com o cessar da era reformista, Dostoievski aparece como um “humanista cristão”, um nacionalista russo que se opõe quer à utopia socialista, quer ao liberalismo, um crente na reconciliação entre classes sociais e um crítico da ocidentalização. Talvez antevisse uma espécie de “terceira via” entre a ocidentalização procurada pelos intelectuais do liberalismo e o niilismo e o socialismo utópico transportadas pela nova geração. Em suma, um conservador de acordo com o “modelo moscovita” que acredita que o Czar encarna as aspirações do povo russo. Seria simplista rotulá-lo apenas de “reacionário” ou “conservador”, um seu biógrafo, Alexandre Gibbson diria que as suas ideias sociais aproximavam-se da solidariedade que nasce da comum participação numa cultura religiosa total. Este ideal encontrava-se na “sobornost”, o ideal de cooperação entre as pessoas de uma comunidade alicerçada em fortes sentimentos religiosos.


Nos anos finais Dostoievski poderia ser catalogado na definição de Schmitt, de um “pessimista antropológico”. A experiência de juventude e as mundividências de uma vida romântica e trágica deixaram as marcas permanentes.


É um homem desencantado, que antevê a história como um grande dilúvio; e as paixões inconsequentes pelas ideologias como um anúncio de catástrofe. Mas foi sobretudo um artista que soube como nenhum outro mergulhar no mais profundo da existência humana.

Vida e tempo de Virginia Woolf

Foi uma revelação quando me deparei com o livro “Mrs. Dalloway”, mais tarde “Orlando”, ainda para ler “Um Quarto só seu” , “As Ondas” e “Rumo ao Farol” (para enumerar as mais emblemáticas). Virginia Woolf foi uma prosadora com alma de poeta e uma visionária profunda da consciência humana. Nesse sentido foi herdeira de Proust, sem alcançar a monumentalidade, e rival de Joyce, sem aprofundar o método. Virginia Woolf ensinou que até um momento banal na vida quotidiana pode tornar-se uma narrativa surpreendente. Viveu submersa na doença mental, o que não a impediu de desenvolver o estilo embora a tenha limitado na obra.

Para recordar a escritora ocorreu não um dos seus muitos romances, mas a biografia escrita pelo sobrinho Quentin Bell, e que recomendo. É uma visão pessoal, que não deixou de cultivar o estudo e a análise do tempo e da vida da autora. É um bom testemunho e um excelente ponto de partida para compreender uma autora tão complexa.

Antero e a decadência

A 11 de Setembro de 1891 Antero de Quental comete suicido em Ponta Delgada. O sentimento de decadência nacional parecia inflamar as inteligências, socorrendo-se da morte voluntária como revolta do instinto contra as circunstâncias. Antero, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco, Manuel Laranjeira, mais tarde Trindade Coelho, anunciavam um astro nefasto que parecia engolir a própria terra portuguesa. Unamuno não foi indiferente, rotulando Portugal como “terra se suicidas”. Ainda que os motivos nem sempre coincidissem com um patriotismo aniquilado, como aconteceu com Camilo, cuja cegueira contribuiu para a sina trágica.


O sentimento de decadência nacional amordaçava o âmago das consciências. Pessimismo glosado pelas penas verbosas da Geração de 70, ao ponto de se tornar um cliché de intelectuais que passaram a procurar alternativas fortes ao modelo constitucional: fosse o republicanismo ou o cesarismo. Da poesia ao romance as páginas cobriram-se de visões sinistras de uma morte anunciada. A primeira geração romântica não tinha deixado despercebido este desencanto, quando Herculano se autoexila, deixando o eco do seu desalento: “Isto dá vontade de morrer.”

O fim de século apenas consubstanciou o sentimento arrastado ao longo de décadas. Antero não deixou de reunir no seu verbo a própria síntese do pessimismo, ao mesmo tempo que alimentava o desejo de redenção. O poeta desdobrou a sua poesia nas dimensões profundas do ideal, na identidade ontológica fica a dúvida do Ser e na preocupação metafísica a consequência da alma que busca a divindade perdida.

É o convertido que não encontra Deus:


“Amortalhei na Fé o pensamento
E achei a paz na inércia do esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!”


O atormentado completamente absorvido com a morte, “O que diz a morte”, “Elogio da Morte” e os sonetos finais reclinados para o pessimismo de uma vida resoluta, é o sentido trágico do combate:


“Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso de penar tornado crente,


Respondeu: desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.”

Long Days Journey Into the Night

Edmund: (…) And several other times in my life, when I was swimming far out, or lying alone on a beach, I have had the same experience. Became the sun, the hot sand, green seaweed anchored to a rock, swaying in the tide. Like a saint’s vision of beatitude. Like a veil of things as they seem drawn back by an unseen hand. For a second you see — and seeing the secret, are the secret. For a second there is meaning! Then the hand lets the veil fall and you are alone, lost in the fog again, and you stumble on toward nowhere, for no good reason!
(…)


It was a great mistake, my being born a man, I would have been much more successful as a sea gull or a fish. As it is, I will always be a stranger who never feels at home, who does not really want and is not really wanted, who can never belong, who must always be a a little in love with death!


TYRONE *Stares at him — impressed. Yes, there’s the makings of a poet in you all right.


*Then protesting uneasily. But that’s morbid craziness about not being wanted and loving death.


EDMUND *Sardonically The *makings of a poet. No, I’m afraid I’m like the guy who is always panhandling for a smoke. He hasn’t even got the makings. He’s got only the habit. I couldn’t touch what I tried to tell you just now. I just stammered. That’s the best I’ll ever do, I mean, if I live. Well, it will be faithful realism, at least. Stammering is the native eloquence of us fog people.”


― Eugene O’Neill, Long Day’s Journey Into Night

Custine e a Rússia #2

Ignace de Gurowski

O autor de Russie encontrava na própria biografia os motivos para reunir o verbo contra a democracia e o sistema que Tocqueville admirava, embora apreensivo é certo. A Revolução e o Terror ainda estavam bem presentes na mentalidade de Custine, mais do que em Tocqueville, distanciado 15 anos daquele e educado na mundanidade da era da restauração borbónica. Para todos os efeitos, Custine era um homem do século XVIII, apesar de nascido na derrocada do Ancien Regime. Tal como o aristocrata que Lampedusa retratará um século depois, era uma espécie em vias de extinção, crescendo na amargura do mundo que tinha perdido e na dissolução do status pelas convulsões revolucionárias. A aristocracia tem como valor supremo a liberdade, contra a multitude incógnita, rafeira e inconsciente. O domínio das massas pouco sensibiliza aos homens nascidos na indiferença das desigualdades e certos da distinção que marca os destinos. Não deixa de confessar no mesmo livro, Russie, que, “embora seja tudo excepto um revolucionário, ainda assim foi revolucionado”. Reconhecia ser o produto de um tempo, embora ambicionasse nostálgico a vivência de um outro. Da aristocracia não levava apenas o dilecto do dinheiro que corrompe as castas, mas a independência de espírito e a liberalidade no carácter que distingue a nobreza do uniformismo democrático. Os nomes que encimam as letras francesas do tempo não escondem a nostalgia por aquele mundo perdido. No traço têm a mesma têmpera aristocrática e o mesmo feitio reaccionário, como Balzac, que na introdução à sua La Comédie humaine, não deixa de salientar que escrevia “à luz de duas grandes verdades, a Monarquia e a Fé Católica”, como monárquico e legitimista também foi Chateaubriand, espírito culto do romantismo mais reaccionário. Ou entre nós, um poeta como João de Lemos, ou um cultor magistral da língua como Camilo Castelo Branco.

Mas há um outro motivo que terá levado Custine a embarcar na viagem russa, que não tanto na inveja literária, ou na ambição da política, mas na armadilha das paixões. O marquês apaixonara-se pelo jovem polaco, belo e rebelde, Ignace de Gurowski, que conhecera em Paris. O mancebo aristocrático, exilado após as insurreição polacas de 1830-31 contra o Czar, rejubilava na juventude. Incandescente e diabólico perfazia os ensejos do sexo mais do que os delírios da alma. Em Paris, Custine, Saint-Barbe e Gurowski vivem um ménage à trois, espécie de liaisons dangereuses na ardorosa concupiscência aristocrática. Ao jeito das melhores tragédias, que afagam o escabroso, lembra a beleza pérfida e inspiradora que rima no mundo dos poetas, como Verlaine e Rimbaud, Oscar Wilde e Bosie Douglas, sintetizando o declínio do espírito em nome dos prazeres mundanos, a queda abrupta no abismo. Com Gurowski gasta somas avultadas de dinheiro, aceita a ruína na cegueira do prazer. Custa alguns embaraços, quando o jovem polaco força Custine a fazer um pedido de casamento em seu nome, depois de ter atacado um velho Senador por considerar que o tinha difamado junto à jovem em questão. Como todas as tropelias do destino acaba por abandonar Custine e casa-se com uma infanta espanhola, envelhecendo nas décadas subsequentes afogado em dívidas e com um rebanho de filhos.

Por esta época Custine e Gurowski ainda são os amigos predilectos. Influente e habilidoso junto a um poeta influenciável e desejoso da atenção do amor, o polaco rebelde convence-o a negociar um perdão junto ao Czar da Rússia. Mas esta suposição não tem eco junto aos factos, nem explica completamente o projecto. Gurowski tinha bons relacionamentos e família na Rússia que procuravam favorecê-lo, Custine pouca diferença faria nesse sentido. Aliás, parece ainda tê-lo prejudicado. Depois da publicação do livro o Czar não só não autorizará Gurowski a regressar, como ainda expulsou o irmão dele, Adam, que acaba por emigrar para os Estados Unidos. A impulsão, a curiosidade o desafio, terão pesado mais do que os devaneios da alma.

A verdade é que a viagem à Rússia começa na companhia do jovem Gurowski. Seguem primmeiro para a Renânia, onde permanecem na cidade de Bad Ems. Ali conhecem o Grão Duque Constantino (irmão do Czar), a figura imponente e decisiva não invoca (para Custine) simpatia. Seguiu-se Bad Kissingen e depois Berlim. Reencontra, ali, o exilado dezembrista Alexander Ivanovich Turgenev, primo do famoso escritor Sergeyevich Turgenev, que já tinha conhecido em Paris, aristocrata de pendor liberal, aspirante reformista do tempo de Alexandre I, em suma, um crítico do regime de Nicolau, mas bem relacionado na sociedade. Turgenev entrega a Custine uma carta de recomendação para ser recebido nos salões da boa sociedade. E com este beneplácito Custine embarca na aventura russa.

O modernismo de Virginia Woolf

Passou um aniversário de Virginia Woolf – e quase que escapava (25 de Janeiro). Não sei dizer o quanto me influenciou quando li “Mrs Dalloway”, obra que marca o zénite criativo da autora. Ainda que “To The Lighthouse” seja reconhecido como o seu magnum opus e “The Waves” (ainda não li!) constitua um vibrante estudo que radicaliza a forma de abordar o romance. A escrita poética, a ondulação dos diálogos, a fragrância narrativa, procura explicar o mais recôndito subterfúgio da consciência e demarca um estilo, uma voz e um sentido poético característico. Não interessa a Woolf descrever a realidade de forma detalhada e “naturalista”, mas descrever o “mundo interior”, os impulsos e sentimentos que preenchem o mais íntimo da existência. Há uma realidade por detrás da realidade observável, que não é palpável, nem pode ser materializada, mas apenas sentida individualmente, uma realidade subjectiva.


Se se pretende entender a obra de V. W. é fundamental traçá-la num registo cronológico que preenche a evolução da autora da escrita tradicional ao modernismo. É o que a demarca dos romances de estreia literária (após o percurso entre jornais e publicações efémeras), com “The Voyage Out” (1915), seguido de “Night and Day” (1919), para a radicalização do estilo, em “Jacob’s Room” (1922), onde encontra a fórmula que a definirá, o “stream of consciousness” (o fluxo de consciência), cuja matriz é essencial à obra mais famosa da autora, “Mrs. Dalloway” (1925).


Não sendo uma opinião popular entre os admiradores de Woolf, gostei de ler “Orlando – a biography”, na verdade, uma carta de amor à sua amiga, e amante, a poetisa Vita Sackville-West, mas também uma reflexão sobre a condição feminina, livro preenchido de ironia e colorações de fantástico, percorrendo as ambiguidades e tragédias da natureza humana. Entendo a depreciação, ainda que injusta. Afinal, os romances mais “soft” da autora assemelham-se a um treino, um exercício de estilo onde procura afinar o traço. Os ensaios (a Room to one’s one, etc.) e os contos reúnem um conjunto fundamental na literatura modernista que juntou a qualidade poética à renovação do estilo, e soube, ao contrário dos detractores desse modernismo, tirar o melhor partido da tradição. De resto, para quem não conhece, recomendo a biografia da autora escrita pelo sobrinho Quentin Bell, que ganha por ter conhecido e privado com a autora.


(Imagem: Uma fotografia mais informal da autora e talvez não tão conhecida, Virginia Woolf com o sobrinho e futuro biógrafo, Quentin Bell).

A poesia de António Sardinha


Talvez nenhum outro doutrinador tenha exercido tanta influência quanto António Maria de Sousa Sardinha (1887-1925), ainda que sujeito, postumamente, às críticas de Alfredo Pimenta (que considerava António Sardinha um “equívoco”), e convergindo o nome do poeta de Monforte com o movimento político que animou, o Integralismo Lusitano. Nascido primeiramente como reacção estética à República e à cultura positivista de oitocentos desceu do mundo das ideias e da cultura para entrar no combate político. Neste prisma devemos considerar o movimento do Integralismo como campo onde Sardinha desenvolve o seu pathos poético sob a divisa “reaportuguesar Portugal”.

Reconhece-se na construção literária o contributo para um lirismo pátrio herdeiro dos cancioneiros de Garrett e continuador da poética de António Nobre (referência para toda uma geração). Ao contrário de Maurras, em França, Sardinha não condena o romantismo, ainda que a principal figura da Action Française, a contrario sensu, tenha também cultivado a mais refinada poesia romântica, na feliz contradição que inspirou o poeta da Provença a novamente procurar articular o classicismo com a sensibilidade moderna. O poeta lusitano reconduz-se ao caminho trilhado pelos seus antecessores líricos (Garrett, Herculano, Camilo e António Nobre). Rumou ao passado de Portugal, à tradição herdada dos cancioneiros medievais e das antigas cantigas populares, procurando no registo da oralidade a valorização da diversidade cultural contrária à unidade numérica democrática, que descobre um certo aristocracismo popular contrário ao “homem massa” da civilização contemporânea.

Em atenção, talvez sublinhar que o livro “A Epopeia da Planície”, publicado em 1915, não consubstancia um título maior da poesia portuguesa, por muito ensejo em recuperar Sardinha no panteão da letras lusitanas, porém não deixa de demarcar uma característica particular no conjunto literário do início do século XX. Afinal, Sardinha não será o maior dos poetas portugueses, mas é certamente o mais português de todos eles. Nos versos é possível encontrar a voz comum que prevalece enquanto coro que reporta em seu âmago o sofrimento da própria paisagem do Alentejo, uma construção que rejeita a abstração moderna em prol do concreto, que procura a riqueza dos pequenos elementos conferindo-lhes um identidade épica. Submerso na coloquialidade entendida na absorção mística do passado, o poeta, do alto da “torre de Ramires”, contempla a genealogia da paisagem enquanto reportório da história portuguesa: “e num cortejo lento, lento, passa, / se tu, visão humana, não me iludes, / o desfilar brumoso da Ascendência. / Figuras graves, graves atitudes, / deslizam com cadência. (…)”.

Numa primeira linha, a opção por uma lírica popular pode ser entendida enquanto subterfúgio a correntes estéticas experimentalistas, produto do sentimento de repulsa face à modernidade, preferindo recolher o espírito às contemplações do campo (afinal, a planície do Alentejo); ou, numa segunda leitura, podíamos entender que, ao ousar colher dessa tradição o seu húmus mais densificante, i.e., a sua essência enquanto identificadora de uma cultura nacional, António Sardinha contribui para inovar a literatura portuguesa que, pelas influências do positivismo e do racionalismo do século XIX, se estrangeirara, ignorando as raízes da cultura nacional.

Não constituí de todo um anacronismo estético, também Fernando Pessoa homenageia a lírica lusa em “Cancioneiro” e “Quadras ao gosto popular”, António Nobre já o preconizara antes, como Afonso Lopes Vieira enseja na mesma dimensionalidade. Os poetas de entre guerras coabitam uma época desejosa de remexer o solo português e dele extrair elementos que preencham a modernidade. Entendem que o “moderno” não parte do vácuo obscuro, mas resulta de um encontro com a voz dos antepassados. A tradição é também o diálogo intemporal do homem, nas palavras de Chesterton, “uma democracia dos mortos”, porque é a súmula do acordo estabelecido entre aqueles que já viveram, os que estão vivos e os que estão para nascer, o mesmo sentido que configurara a grande arte de T.S.Eliot, Ezra Pound e do primeiro modernismo, i.e., a aliança entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo, porque o progresso não pode avançar sem a lição dos séculos. Dificilmente, ou de forma tão linear, Sardinha integraria esse grupo de forma tão completa, mesmo na compleição da radicalidade. A vitalidade fica-se pelas primícias que a vanguarda estética impulsiona, contudo, não alcança a mesma repercussão em estilo, nem em matéria.

Não é uma poesia que preencha o gosto universalista das vanguardas, certamente, nem pretende muralhar a arte em torno da abstracção, mas entende que a cultura popular é mais complexa do que a mera simplificação das fórmulas. No poema “O louvor do sal” encontramos a objectividade lírica coabitada entre a significação do elementar e do sagrado: “Ó sal, pedrinha estimada/ que vais à mesa do rey/ não te conheço soberbas/ por isso te louvarei”. Se ainda ingénuo na fórmula, vem da influência dos ritmos populares, conferindo-lhe singular musicalidade, também identificável nos coros monasteriais e no canto alentejano: “Pode na casa do pobre/ não haver luz, faltar pão,/andar por fóra a saúde/ mas lá o sal é que não!” Não pretende intelectualizar, mas apenas referenciar o quotidiano, o simples e o singelo, aquilo que é perceptível e conhecido ao próprio povo, sem necessidade da grandiloquência poética ou estabelecer analogias filosóficas. Os objectos constroem a realidade rural e cristã onde cada elemento se perpetua na continuidade de um horizonte infinito de renovação: “E os carros voltam. Voltam com o trigo. / Não sei que génio antigo / me acode ao avistá-los em cortejo! / Minh’ alma sobe ao longo das idades. / Que estranhas divindades / são essas que me falam, quando os vejo?” (“Geórgica da Colheita”).

O poeta não pretende radicalizar a fórmula mas apenas reconduzi-la à sua genuinidade, não pretende o superlativo, mas o essencial. Coabita inexorável o reencontro com a voz do passado. Na bidimensionalidade que preenche os elementos artísticos também reencontra o poeta a sua paisagem “interior” em contraposição à paisagem “exterior”, como também referia Fernando Pessoa: dois uníssonos reconduzidos à essência da qual resultará a arte. Neste entendimento, há uma realidade exterior, descrita pelo poeta, identificada nas próprias raízes nacionais e na espiritualidade, que se confunde com o subconsciente poético do autor. É a “tradição do novo” (Rosenberg) que impede a arte de cair na repetição inconsequente, no cliché inusitado sem poder para se libertar da sua banalidade. Reclinado para esse sentido onírico o poeta assume-se também como visionário: o espírito do passado desfila nas paisagens do presente. Entoa, entre redondilhas e ladainhas, o congraçamento entre o realismo da paisagem, unido, evidentemente, à própria história portuguesa.

Mas “A Epopeia da Planície” não pretende apenas a experimentalidade estética, na essência o poeta reporta-se ao canto do povo humilde, do horizonte alentejano, em suma: é a epopeia do reencontro com a tradição popular. Glorifica um todo cultural e não um ente singular identificável, não há um herói que não seja a própria paisagem, ou a própria pedra talhada pelo homem. É a voz anónima do povo, o homem do campo, habitante da grande planície, quem vem novamente reivindicar a sua voz. Também no poema “Évora-cidade” sustém esse suspiro: “Atrás do arado,/ a raça canta sempre e ainda espera. (…)// E a Raça canta a moirejar p’la vida./ Honrada e scismadora/ Embala-se no ópio do horizonte (…).”

A expressão “Valor da raça”, tão cara ao integralismo, e fonte de tantas confusões, vinha identificar a “Verdade Portuguesa”. Para compreender o pensamento de Sardinha é necessário ler a palavra “raça” enquanto “Grey”, extraído naturalmente do ex libris de D.João II (Pola Ley, Pola Grey), nas palavras do poeta: “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino”. Numa mesma acepção tal ideia pode ser encontrada na filosofia tomista e vem novamente o poeta declarar: “as instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue-se-lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência”.

O poeta não deixa de sentir a força do passado, mas a saudade (elemento intrínseco à alma lusitana) não deve ser confundida com o “saudosismo”. Muitos poderão encontrar no substracto lírico uma identificação de António Sardinha com o Saudosismo de Pascoaes. Contudo, a veia nostálgica de Pascoaes não se coaduna completamente com o espírito tradicionalista e revolucionário de António Sardinha, como também escreve o poeta: “(…)a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade (…)” e finalmente confronta o ‘saudosismo’ de Pascoaes: “Resulta daí que a Esperança, – e não a Saudade, – é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.” (Carta a Luís de Almeida Braga, 1913).

Sardinha não invoca qualquer passadismo: não verte lágrimas sobre uma grandeza perdida, pelo contrário, aguarda ansioso por uma grandeza futura. Afirma-se, sobretudo, como tradicionalista, descobrindo na tradição uma “continuidade interminável”, e não um “ponto imóvel no passado (…) renovando-se sempre”, será de forma ineliminável (como escreveu em “O Valor da Raça (1915))”: «um retorno ao fio interrompido da história».