A poesia de António Sardinha


Talvez nenhum outro doutrinador tenha exercido tanta influência quanto António Maria de Sousa Sardinha (1887-1925), ainda que sujeito, postumamente, às críticas de Alfredo Pimenta (que considerava António Sardinha um “equívoco”), e convergindo o nome do poeta de Monforte com o movimento político que animou, o Integralismo Lusitano. Nascido primeiramente como reacção estética à República e à cultura positivista de oitocentos desceu do mundo das ideias e da cultura para entrar no combate político. Neste prisma devemos considerar o movimento do Integralismo como campo onde Sardinha desenvolve o seu pathos poético sob a divisa “reaportuguesar Portugal”.

Reconhece-se na construção literária o contributo para um lirismo pátrio herdeiro dos cancioneiros de Garrett e continuador da poética de António Nobre (referência para toda uma geração). Ao contrário de Maurras, em França, Sardinha não condena o romantismo, ainda que a principal figura da Action Française, a contrario sensu, tenha também cultivado a mais refinada poesia romântica, na feliz contradição que inspirou o poeta da Provença a novamente procurar articular o classicismo com a sensibilidade moderna. O poeta lusitano reconduz-se ao caminho trilhado pelos seus antecessores líricos (Garrett, Herculano, Camilo e António Nobre). Rumou ao passado de Portugal, à tradição herdada dos cancioneiros medievais e das antigas cantigas populares, procurando no registo da oralidade a valorização da diversidade cultural contrária à unidade numérica democrática, que descobre um certo aristocracismo popular contrário ao “homem massa” da civilização contemporânea.

Em atenção, talvez sublinhar que o livro “A Epopeia da Planície”, publicado em 1915, não consubstancia um título maior da poesia portuguesa, por muito ensejo em recuperar Sardinha no panteão da letras lusitanas, porém não deixa de demarcar uma característica particular no conjunto literário do início do século XX. Afinal, Sardinha não será o maior dos poetas portugueses, mas é certamente o mais português de todos eles. Nos versos é possível encontrar a voz comum que prevalece enquanto coro que reporta em seu âmago o sofrimento da própria paisagem do Alentejo, uma construção que rejeita a abstração moderna em prol do concreto, que procura a riqueza dos pequenos elementos conferindo-lhes um identidade épica. Submerso na coloquialidade entendida na absorção mística do passado, o poeta, do alto da “torre de Ramires”, contempla a genealogia da paisagem enquanto reportório da história portuguesa: “e num cortejo lento, lento, passa, / se tu, visão humana, não me iludes, / o desfilar brumoso da Ascendência. / Figuras graves, graves atitudes, / deslizam com cadência. (…)”.

Numa primeira linha, a opção por uma lírica popular pode ser entendida enquanto subterfúgio a correntes estéticas experimentalistas, produto do sentimento de repulsa face à modernidade, preferindo recolher o espírito às contemplações do campo (afinal, a planície do Alentejo); ou, numa segunda leitura, podíamos entender que, ao ousar colher dessa tradição o seu húmus mais densificante, i.e., a sua essência enquanto identificadora de uma cultura nacional, António Sardinha contribui para inovar a literatura portuguesa que, pelas influências do positivismo e do racionalismo do século XIX, se estrangeirara, ignorando as raízes da cultura nacional.

Não constituí de todo um anacronismo estético, também Fernando Pessoa homenageia a lírica lusa em “Cancioneiro” e “Quadras ao gosto popular”, António Nobre já o preconizara antes, como Afonso Lopes Vieira enseja na mesma dimensionalidade. Os poetas de entre guerras coabitam uma época desejosa de remexer o solo português e dele extrair elementos que preencham a modernidade. Entendem que o “moderno” não parte do vácuo obscuro, mas resulta de um encontro com a voz dos antepassados. A tradição é também o diálogo intemporal do homem, nas palavras de Chesterton, “uma democracia dos mortos”, porque é a súmula do acordo estabelecido entre aqueles que já viveram, os que estão vivos e os que estão para nascer, o mesmo sentido que configurara a grande arte de T.S.Eliot, Ezra Pound e do primeiro modernismo, i.e., a aliança entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo, porque o progresso não pode avançar sem a lição dos séculos. Dificilmente, ou de forma tão linear, Sardinha integraria esse grupo de forma tão completa, mesmo na compleição da radicalidade. A vitalidade fica-se pelas primícias que a vanguarda estética impulsiona, contudo, não alcança a mesma repercussão em estilo, nem em matéria.

Não é uma poesia que preencha o gosto universalista das vanguardas, certamente, nem pretende muralhar a arte em torno da abstracção, mas entende que a cultura popular é mais complexa do que a mera simplificação das fórmulas. No poema “O louvor do sal” encontramos a objectividade lírica coabitada entre a significação do elementar e do sagrado: “Ó sal, pedrinha estimada/ que vais à mesa do rey/ não te conheço soberbas/ por isso te louvarei”. Se ainda ingénuo na fórmula, vem da influência dos ritmos populares, conferindo-lhe singular musicalidade, também identificável nos coros monasteriais e no canto alentejano: “Pode na casa do pobre/ não haver luz, faltar pão,/andar por fóra a saúde/ mas lá o sal é que não!” Não pretende intelectualizar, mas apenas referenciar o quotidiano, o simples e o singelo, aquilo que é perceptível e conhecido ao próprio povo, sem necessidade da grandiloquência poética ou estabelecer analogias filosóficas. Os objectos constroem a realidade rural e cristã onde cada elemento se perpetua na continuidade de um horizonte infinito de renovação: “E os carros voltam. Voltam com o trigo. / Não sei que génio antigo / me acode ao avistá-los em cortejo! / Minh’ alma sobe ao longo das idades. / Que estranhas divindades / são essas que me falam, quando os vejo?” (“Geórgica da Colheita”).

O poeta não pretende radicalizar a fórmula mas apenas reconduzi-la à sua genuinidade, não pretende o superlativo, mas o essencial. Coabita inexorável o reencontro com a voz do passado. Na bidimensionalidade que preenche os elementos artísticos também reencontra o poeta a sua paisagem “interior” em contraposição à paisagem “exterior”, como também referia Fernando Pessoa: dois uníssonos reconduzidos à essência da qual resultará a arte. Neste entendimento, há uma realidade exterior, descrita pelo poeta, identificada nas próprias raízes nacionais e na espiritualidade, que se confunde com o subconsciente poético do autor. É a “tradição do novo” (Rosenberg) que impede a arte de cair na repetição inconsequente, no cliché inusitado sem poder para se libertar da sua banalidade. Reclinado para esse sentido onírico o poeta assume-se também como visionário: o espírito do passado desfila nas paisagens do presente. Entoa, entre redondilhas e ladainhas, o congraçamento entre o realismo da paisagem, unido, evidentemente, à própria história portuguesa.

Mas “A Epopeia da Planície” não pretende apenas a experimentalidade estética, na essência o poeta reporta-se ao canto do povo humilde, do horizonte alentejano, em suma: é a epopeia do reencontro com a tradição popular. Glorifica um todo cultural e não um ente singular identificável, não há um herói que não seja a própria paisagem, ou a própria pedra talhada pelo homem. É a voz anónima do povo, o homem do campo, habitante da grande planície, quem vem novamente reivindicar a sua voz. Também no poema “Évora-cidade” sustém esse suspiro: “Atrás do arado,/ a raça canta sempre e ainda espera. (…)// E a Raça canta a moirejar p’la vida./ Honrada e scismadora/ Embala-se no ópio do horizonte (…).”

A expressão “Valor da raça”, tão cara ao integralismo, e fonte de tantas confusões, vinha identificar a “Verdade Portuguesa”. Para compreender o pensamento de Sardinha é necessário ler a palavra “raça” enquanto “Grey”, extraído naturalmente do ex libris de D.João II (Pola Ley, Pola Grey), nas palavras do poeta: “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino”. Numa mesma acepção tal ideia pode ser encontrada na filosofia tomista e vem novamente o poeta declarar: “as instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue-se-lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência”.

O poeta não deixa de sentir a força do passado, mas a saudade (elemento intrínseco à alma lusitana) não deve ser confundida com o “saudosismo”. Muitos poderão encontrar no substracto lírico uma identificação de António Sardinha com o Saudosismo de Pascoaes. Contudo, a veia nostálgica de Pascoaes não se coaduna completamente com o espírito tradicionalista e revolucionário de António Sardinha, como também escreve o poeta: “(…)a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade (…)” e finalmente confronta o ‘saudosismo’ de Pascoaes: “Resulta daí que a Esperança, – e não a Saudade, – é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.” (Carta a Luís de Almeida Braga, 1913).

Sardinha não invoca qualquer passadismo: não verte lágrimas sobre uma grandeza perdida, pelo contrário, aguarda ansioso por uma grandeza futura. Afirma-se, sobretudo, como tradicionalista, descobrindo na tradição uma “continuidade interminável”, e não um “ponto imóvel no passado (…) renovando-se sempre”, será de forma ineliminável (como escreveu em “O Valor da Raça (1915))”: «um retorno ao fio interrompido da história».

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