“O Captain! My Captain!”

Whitman confunde-se com a obra, um livro que acabou por preencher toda uma vida. Em “Leaves of Grass” o herói é o próprio poeta que, embora comungando a pertença a uma mesma colectividade, sabe individualizar-se. A voz parte do particular para o universal, um eu que se hipertrofia sem jamais esgotar a vitalidade. Whitman celebrou o amor, a beleza e a juventude, sem pretensões grandiloquentes, onde a coloquialidade alcança a beleza poética. Ali é a poesia quem sobe ao povo. Não desce ao vulgar, mas procura a grandeza na obscuridade do homem comum. Whitman antecipou o modernismo na literatura, ao mesmo tempo que contribuiu para criar uma identidade literária.


De certa forma foi a voz dessa outra América, que não se reduz a Washington, nem ao famigerado Império, mas constituiu também um sonho e uma esperança para quantos embarcavam na grande viagem, que viveu e chorou a guerra civil e cantou a unidade na paz. Mas o poeta foi também o grande incompreendido, isolado das correntes literárias do tempo e quase ignorado. Foi o esteta que jamais aceitou dissolver-se na vulgaridade moderna e, elevando-se acima da homogeneidade imposta pelas convenções, soube reiventar-se para se tornar imortal.

O Terramoto de Lisboa

A 1 de Novembro de 1755 Lisboa era devastada por um violento terramoto, seguido de um incêndio e de um tsunami, para horror da Europa que recebia as notícias do cataclismo. Voltaire analisou o evento nestes versos “Poème sur le désastre de Lisbonne”, espécie de introito à obra que mais tarde o celebrizaria, o romance “Cândido”, e, no mesmo entendimento crítico, não deixa de delapidar as filosofias do optimismo que encantavam os contemporâneos, de Leibniz a Pope. Para Voltaire, não poderia existir uma entidade benevolente e carinhosa que interviesse nos assuntos humanos para recompensar os virtuosos e punir os culpados, o terramoto em Lisboa revelava a punição uníssona dos homens independentemente da salvação da alma. Se a Providência é misericordiosa por que punia assim os inocentes?

Poderia supor que o desejo de realizar a felicidade mais não era do que uma ilusão face à inevitabilidade da catástrofe. São as premissas do iluminismo que pressupõe a razão contra o divino, o fatalismo contra o optimismo, a ciência contra a metafísica, o relativo contra o absoluto, o deísmo (ou mesmo o ateísmo) contra o catolicismo, o corpo contra o espírito, o bem e o mal são pressupostos da ignorância e não há qualquer mistério na Providência. Assim analisava Voltaire os eventos à luz da sua ideologia, criticável, mas de pena astuta, como em tudo o que elaborou, ganhando mais pelo estilo e pelo brilho sarcástico com que elaborou o verso. Fica como documento curioso de um episódio macabro.

Antero e a decadência

A 11 de Setembro de 1891 Antero de Quental comete suicido em Ponta Delgada. O sentimento de decadência nacional parecia inflamar as inteligências, socorrendo-se da morte voluntária como revolta do instinto contra as circunstâncias. Antero, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco, Manuel Laranjeira, mais tarde Trindade Coelho, anunciavam um astro nefasto que parecia engolir a própria terra portuguesa. Unamuno não foi indiferente, rotulando Portugal como “terra se suicidas”. Ainda que os motivos nem sempre coincidissem com um patriotismo aniquilado, como aconteceu com Camilo, cuja cegueira contribuiu para a sina trágica.


O sentimento de decadência nacional amordaçava o âmago das consciências. Pessimismo glosado pelas penas verbosas da Geração de 70, ao ponto de se tornar um cliché de intelectuais que passaram a procurar alternativas fortes ao modelo constitucional: fosse o republicanismo ou o cesarismo. Da poesia ao romance as páginas cobriram-se de visões sinistras de uma morte anunciada. A primeira geração romântica não tinha deixado despercebido este desencanto, quando Herculano se autoexila, deixando o eco do seu desalento: “Isto dá vontade de morrer.”

O fim de século apenas consubstanciou o sentimento arrastado ao longo de décadas. Antero não deixou de reunir no seu verbo a própria síntese do pessimismo, ao mesmo tempo que alimentava o desejo de redenção. O poeta desdobrou a sua poesia nas dimensões profundas do ideal, na identidade ontológica fica a dúvida do Ser e na preocupação metafísica a consequência da alma que busca a divindade perdida.

É o convertido que não encontra Deus:


“Amortalhei na Fé o pensamento
E achei a paz na inércia do esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!”


O atormentado completamente absorvido com a morte, “O que diz a morte”, “Elogio da Morte” e os sonetos finais reclinados para o pessimismo de uma vida resoluta, é o sentido trágico do combate:


“Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso de penar tornado crente,


Respondeu: desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.”

200 anos de Baudelaire

A França tem sido pródiga em revelar os nomes mais audaciosos, radicais, românticos, profanos e universais da literatura e das artes. No século XIX, quando realizava a revolução política, ao mesmo tempo, concretizava a revolução literária. Neste sentido, Baudelaire encarnou o espírito de uma época. Foi o protótipo do “poeta maldito”, quase um cliché nos tempos que correm incapaz de compreender a revolução por detrás da originalidade.


O seu livro “As Flores do Mal” tornou-se um paradigma. O próprio Eça no seu Fradique não perde esse reportório “baudelairiano” (ou no João da Ega), nem Cesário, ou Gomes Leal (esse prodígio lírico tão mal tratado), nem o delicado António Nobre, nem Camilo Pessanha, nem Mário de Sá-Carneiro. São gerações sucessivas que embarcam na aventura do delírio poético reclinado para imagens grotescas e sumptuosas, ao mesmo tempo deleitadas no delírio, na obsessão e na luxúria.


Baudelaire apresentou as sombras por detrás do mundo das luzes. O livro que o celebrizou chamava-se “Les Lesbiennes” (As Lésbicas), mas foi persuadido pelos amigos a alterar. Chamou então “Les Fleurs du Mal”. A homossexualidade feminina já tinha sido tratada por outros autores como Balzac, Gauthier, Delatouche. Acompanha também o desenvolvimento de personagens femininas na vertigem do declínio. Nesse sentido, tal como Flaubert, com “Madame Bovary”, o poeta vai parar a tribunal e é condenado a pagar uma multa avultada.


Os poemas onde exalta o amor lésbico são censurados e retirados da obra. Como o poema “Lesbos”:


“Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias.”


Baudelaire arranca a poesia do canto etéreo do romantismo para o pantanoso mundo da realidade quotidiana e para os subterfúgios mais sombrios da alma humana. É o arcanjo renegado dos olimpos literários e atirado para os “infernos polares” (lembrando uma das imagens poéticas do seu “Canto de Outono). Sonda as profundezas do espírito mais intragável e abjecto e reclina-se diante do mais decadente e impuro da sociedade.

O seu espírito vive atormentado e nunca realizado. Recordo sempre aqueles versos, novamente de “Chant d’automne”: “Mon esprit est pareil à la tour qui succombe/ Sous les coups du bélier infatigable et lourd.”


A sua audácia abriu todo um novo universo, permitindo aos poetas descobrir novas fórmulas e imagens. Talvez odiasse ser, como Victor Hugo, uma espécie de mestre. O que sem intenção terá sido também. Um terramoto que vandalizou os templos sagrados da poesia romântica e do charme literário. Como todos os grande fenómenos da natureza passou de forma veloz e demolidora até ao abismo.

A poesia de António Sardinha


Talvez nenhum outro doutrinador tenha exercido tanta influência quanto António Maria de Sousa Sardinha (1887-1925), ainda que sujeito, postumamente, às críticas de Alfredo Pimenta (que considerava António Sardinha um “equívoco”), e convergindo o nome do poeta de Monforte com o movimento político que animou, o Integralismo Lusitano. Nascido primeiramente como reacção estética à República e à cultura positivista de oitocentos desceu do mundo das ideias e da cultura para entrar no combate político. Neste prisma devemos considerar o movimento do Integralismo como campo onde Sardinha desenvolve o seu pathos poético sob a divisa “reaportuguesar Portugal”.

Reconhece-se na construção literária o contributo para um lirismo pátrio herdeiro dos cancioneiros de Garrett e continuador da poética de António Nobre (referência para toda uma geração). Ao contrário de Maurras, em França, Sardinha não condena o romantismo, ainda que a principal figura da Action Française, a contrario sensu, tenha também cultivado a mais refinada poesia romântica, na feliz contradição que inspirou o poeta da Provença a novamente procurar articular o classicismo com a sensibilidade moderna. O poeta lusitano reconduz-se ao caminho trilhado pelos seus antecessores líricos (Garrett, Herculano, Camilo e António Nobre). Rumou ao passado de Portugal, à tradição herdada dos cancioneiros medievais e das antigas cantigas populares, procurando no registo da oralidade a valorização da diversidade cultural contrária à unidade numérica democrática, que descobre um certo aristocracismo popular contrário ao “homem massa” da civilização contemporânea.

Em atenção, talvez sublinhar que o livro “A Epopeia da Planície”, publicado em 1915, não consubstancia um título maior da poesia portuguesa, por muito ensejo em recuperar Sardinha no panteão da letras lusitanas, porém não deixa de demarcar uma característica particular no conjunto literário do início do século XX. Afinal, Sardinha não será o maior dos poetas portugueses, mas é certamente o mais português de todos eles. Nos versos é possível encontrar a voz comum que prevalece enquanto coro que reporta em seu âmago o sofrimento da própria paisagem do Alentejo, uma construção que rejeita a abstração moderna em prol do concreto, que procura a riqueza dos pequenos elementos conferindo-lhes um identidade épica. Submerso na coloquialidade entendida na absorção mística do passado, o poeta, do alto da “torre de Ramires”, contempla a genealogia da paisagem enquanto reportório da história portuguesa: “e num cortejo lento, lento, passa, / se tu, visão humana, não me iludes, / o desfilar brumoso da Ascendência. / Figuras graves, graves atitudes, / deslizam com cadência. (…)”.

Numa primeira linha, a opção por uma lírica popular pode ser entendida enquanto subterfúgio a correntes estéticas experimentalistas, produto do sentimento de repulsa face à modernidade, preferindo recolher o espírito às contemplações do campo (afinal, a planície do Alentejo); ou, numa segunda leitura, podíamos entender que, ao ousar colher dessa tradição o seu húmus mais densificante, i.e., a sua essência enquanto identificadora de uma cultura nacional, António Sardinha contribui para inovar a literatura portuguesa que, pelas influências do positivismo e do racionalismo do século XIX, se estrangeirara, ignorando as raízes da cultura nacional.

Não constituí de todo um anacronismo estético, também Fernando Pessoa homenageia a lírica lusa em “Cancioneiro” e “Quadras ao gosto popular”, António Nobre já o preconizara antes, como Afonso Lopes Vieira enseja na mesma dimensionalidade. Os poetas de entre guerras coabitam uma época desejosa de remexer o solo português e dele extrair elementos que preencham a modernidade. Entendem que o “moderno” não parte do vácuo obscuro, mas resulta de um encontro com a voz dos antepassados. A tradição é também o diálogo intemporal do homem, nas palavras de Chesterton, “uma democracia dos mortos”, porque é a súmula do acordo estabelecido entre aqueles que já viveram, os que estão vivos e os que estão para nascer, o mesmo sentido que configurara a grande arte de T.S.Eliot, Ezra Pound e do primeiro modernismo, i.e., a aliança entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo, porque o progresso não pode avançar sem a lição dos séculos. Dificilmente, ou de forma tão linear, Sardinha integraria esse grupo de forma tão completa, mesmo na compleição da radicalidade. A vitalidade fica-se pelas primícias que a vanguarda estética impulsiona, contudo, não alcança a mesma repercussão em estilo, nem em matéria.

Não é uma poesia que preencha o gosto universalista das vanguardas, certamente, nem pretende muralhar a arte em torno da abstracção, mas entende que a cultura popular é mais complexa do que a mera simplificação das fórmulas. No poema “O louvor do sal” encontramos a objectividade lírica coabitada entre a significação do elementar e do sagrado: “Ó sal, pedrinha estimada/ que vais à mesa do rey/ não te conheço soberbas/ por isso te louvarei”. Se ainda ingénuo na fórmula, vem da influência dos ritmos populares, conferindo-lhe singular musicalidade, também identificável nos coros monasteriais e no canto alentejano: “Pode na casa do pobre/ não haver luz, faltar pão,/andar por fóra a saúde/ mas lá o sal é que não!” Não pretende intelectualizar, mas apenas referenciar o quotidiano, o simples e o singelo, aquilo que é perceptível e conhecido ao próprio povo, sem necessidade da grandiloquência poética ou estabelecer analogias filosóficas. Os objectos constroem a realidade rural e cristã onde cada elemento se perpetua na continuidade de um horizonte infinito de renovação: “E os carros voltam. Voltam com o trigo. / Não sei que génio antigo / me acode ao avistá-los em cortejo! / Minh’ alma sobe ao longo das idades. / Que estranhas divindades / são essas que me falam, quando os vejo?” (“Geórgica da Colheita”).

O poeta não pretende radicalizar a fórmula mas apenas reconduzi-la à sua genuinidade, não pretende o superlativo, mas o essencial. Coabita inexorável o reencontro com a voz do passado. Na bidimensionalidade que preenche os elementos artísticos também reencontra o poeta a sua paisagem “interior” em contraposição à paisagem “exterior”, como também referia Fernando Pessoa: dois uníssonos reconduzidos à essência da qual resultará a arte. Neste entendimento, há uma realidade exterior, descrita pelo poeta, identificada nas próprias raízes nacionais e na espiritualidade, que se confunde com o subconsciente poético do autor. É a “tradição do novo” (Rosenberg) que impede a arte de cair na repetição inconsequente, no cliché inusitado sem poder para se libertar da sua banalidade. Reclinado para esse sentido onírico o poeta assume-se também como visionário: o espírito do passado desfila nas paisagens do presente. Entoa, entre redondilhas e ladainhas, o congraçamento entre o realismo da paisagem, unido, evidentemente, à própria história portuguesa.

Mas “A Epopeia da Planície” não pretende apenas a experimentalidade estética, na essência o poeta reporta-se ao canto do povo humilde, do horizonte alentejano, em suma: é a epopeia do reencontro com a tradição popular. Glorifica um todo cultural e não um ente singular identificável, não há um herói que não seja a própria paisagem, ou a própria pedra talhada pelo homem. É a voz anónima do povo, o homem do campo, habitante da grande planície, quem vem novamente reivindicar a sua voz. Também no poema “Évora-cidade” sustém esse suspiro: “Atrás do arado,/ a raça canta sempre e ainda espera. (…)// E a Raça canta a moirejar p’la vida./ Honrada e scismadora/ Embala-se no ópio do horizonte (…).”

A expressão “Valor da raça”, tão cara ao integralismo, e fonte de tantas confusões, vinha identificar a “Verdade Portuguesa”. Para compreender o pensamento de Sardinha é necessário ler a palavra “raça” enquanto “Grey”, extraído naturalmente do ex libris de D.João II (Pola Ley, Pola Grey), nas palavras do poeta: “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino”. Numa mesma acepção tal ideia pode ser encontrada na filosofia tomista e vem novamente o poeta declarar: “as instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue-se-lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência”.

O poeta não deixa de sentir a força do passado, mas a saudade (elemento intrínseco à alma lusitana) não deve ser confundida com o “saudosismo”. Muitos poderão encontrar no substracto lírico uma identificação de António Sardinha com o Saudosismo de Pascoaes. Contudo, a veia nostálgica de Pascoaes não se coaduna completamente com o espírito tradicionalista e revolucionário de António Sardinha, como também escreve o poeta: “(…)a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade (…)” e finalmente confronta o ‘saudosismo’ de Pascoaes: “Resulta daí que a Esperança, – e não a Saudade, – é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.” (Carta a Luís de Almeida Braga, 1913).

Sardinha não invoca qualquer passadismo: não verte lágrimas sobre uma grandeza perdida, pelo contrário, aguarda ansioso por uma grandeza futura. Afirma-se, sobretudo, como tradicionalista, descobrindo na tradição uma “continuidade interminável”, e não um “ponto imóvel no passado (…) renovando-se sempre”, será de forma ineliminável (como escreveu em “O Valor da Raça (1915))”: «um retorno ao fio interrompido da história».

Erlkönig, o Medo e a Morte

“Der Erlkönig ” é dos poemas de Goethe que maior fama alcançou após ser musicado. A figura do Erlkönig preenche o imaginário mítico escandinavo e germânico, uma figura das trevas, espécie de elfo (em bom rigor o “Rei dos Elfos”) que seduz os humanos para satisfazer os seus caprichos maléficos. Dos irmãos Grimm ao folclore popular era o tipo de história que as crianças dos séculos antigos temiam ouvir à noite. O romantismo encontrava aqui a perfeita inspiração no cultivo do místico, do tenebroso e do dramático. A ténue fronteira que divide a superstição e a razão favorece o esplendor da poesia.


A história é singela e trágica, um pai e um filho que seguem pela noite quando o rapaz sente atemorizado a presença do Erlkönig. O diálogo é construído entre o Elfo demoníaco a tentar seduzir o rapaz com promessas e o pai, aparentemente ignorante da presença sobrenatural, tentando sossegar a criança sem entender o perigo. A criatura das trevas comove em palavras dóceis, até que sentindo infrutíferas as promessas demove-se à compaixão e revela a face demoníaca. A melodia de Schubert eleva a musicalidade da palavra poética e confere-lhe toda a energia melodramática capaz de desassossegar o público. O momento em que o Erlkönig perde a máscara da sedução acompanha o ritmo frenético da melodia. A criança conhece então o desfecho, lembrando à maneira romântica que o amor é acompanhado pela fatalidade e o nosso destino está está escrito independentemente da fuga que pretendamos comandar. Schubert não foi o único a adaptar o poema mas é talvez a mais famosa das melodias.


A própria letra do poema origina interpretações variadas e pode ser entendido em variadíssimos contextos. O pai procurando proteger o filho do mal é talvez o traço mais lacónico. No final essa determinação mostra-se vã. A morte apresenta-se aos românticos como a derradeira consequência das vicissitudes da paixão: seja a dor dos amados, seja a afinidade parental, seja a busca pelo heroísmo inconsequente. Noutra leitura há quem entenda que o pai simplesmente procurava assegurar a sobrevivência do filho adoecido, novamente revelando o fatalismo que assombra o esforço humano tão pueril na determinação que se entrega a esforços (ainda que efémeros) para lograr escapar à sina.


Ou simplesmente entende o poeta que o mal é inevitável e a morte é tão caprichosa como inclemente, independentemente do caminho que para si o homem procure traçar. Somos escravos dos nossos medos e o misticismo apenas preenche o refrigério ao desconhecido. A morte encobre todas a dúvidas e receios na penumbra do seu mistério, a dimensão sobre a qual os poetas sondam todas as instâncias sem arrancar um sentido. No final de todas as histórias programadas no drama romântico como hipérbole do inconsciente e do dramático, o destino, sempre entidade omnipresente e omnipotente, vem ocupar a lacuna da razão e separar o herói da sua meta.

Seja como for a imagem é perturbadora como os românticos sempre admiraram.

Afonso Lopes Vieira, poeta da Portugalidade

Afonso Lopes Vieira, por Columbano Bordalo Pinheiro (1910).

Afonso Lopes Vieira foi poeta de fino e delicado traço, um príncipe das letras que quis novamente devolver à literatura o seu carácter primordial roubado às cantigas medievais e à essência romântica antes vivida em Garrett e António Nobre. Foi o esteta popular por excelência, inspirado pelo intuito de regressar às origens da pátria. Achava ele que a missão do poeta era “dar uma soberba lição de história e de patriotismo aos que amanhã hão de ser os dirigentes de Portugal”.


Foi um poeta ecléctico, que em jovem traduziu a obra do anarquista russo Kropotkine. Também monárquico que desafiou as repúblicas, com obra apreendida quer na Primeira República, com o poema “Ao Soldado Desconhecido”(1925) e cuja consequência acabou por ser a prisão; quer no Estado Novo, com o poema “Éclogas de Agora” (1935), no que viria a ficar anos depois conhecida como “poesia de resistência”. Católico por educação, não deixou de ser um panteísta. Monárquico, não deixou de colaborar com os “seareiros” na revista “Homens Livres”. Foi em tudo um paradoxo.


Ficou na memória um episódio que não pude deixar de assinalar, aquando da prisão do comandante Henrique Paiva Couceiro. Em 1937, Hipólito Raposo foi também preso, alegadamente porque ia de visita a Paiva Couceiro. Lopes Vieira deslocou-se ao local, por sua vez, perguntando, de forma provocatória, ao dito guarda «se era ali que prendiam os que perguntavam pelo Comandante». Valeu-lhe então 15 dias de prisão. Mas o poeta monárquico sabia o que a luta custava e não dava o braço a torcer.

Vida e Mistério de António Nobre

António Nobre teve o destino dos poetas. Como os melhores, Cesário Verde ou Mário de Sá Carneiro, Byron ou Shelley, desaparece no momento em que a idade é pródiga em desvelar o talento. O fascinante não está na curta biografia, mas na obra produzida. Em vida publicou apenas um livro, Só, nas palavras do vate, o “livro mais triste que há em Portugal”. A poética esconde muito do pathos existencial arreigado às vicissitudes de uma personalidade extasiada no sofrimento. A própria intimidade permaneceu obscurecida num sarcófago. Não que interesse – mas interessa! – conhecer o leito dos poetas, ou os armários onde se trancaram, mas, ainda que não explique completamente a obra, ajuda a entendê-la e a descodificá-la.

A poesia de Nobre preenche o vago das paixões, os últimos suspiros da puberdade e o reconhecimento e rejeição da adultez emergente. Mas a maior curiosidade prende-se em relação à sua sexualidade. A feminilidade constituiu o opróbrio da crítica, sem que o próprio talvez pudesse, mesmo que conscientemente, entender ou explorar de forma completa esses desejos, e não apenas na figuração pusilanime, quase infantil, de inspirações amorosas inconsequentes e nunca consumadas ou mesmo conhecidas.

Os estudos mal-conseguidos em Coimbra fortalecem a amargura que arrastará para as ruas de Paris, onde se matricula na Sorbonne e consegue o que Coimbra lhe negara, um diploma em Direito. O exílio francês inspira um dos mais belos poemas, “Lusitânia no bairro latino” (referindo-se ao Quartier Latin onde viveu como estudante). Realmente, o único exílio de Nobre é ele próprio. A mudança de geografia representa uma evolução, da influência de Garrett, primeiro, ao simbolismo de Verlaine e Baudelaire, depois. Inspirado e espontâneo, tradicional e moderno, procura pela identidade portuguesa, no tom coloquial e popular, como se constantemente transportasse a pátria às costas e jamais se libertasse da mesma letargia. Como todos os “exilados” retém sentimentos paradoxais, entre o amor e o ódio à terra que o viu nascer, confessando que “desgraça nascer em Portugal”, ou o “Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó.”

Em vários momentos ressalta a memória da infância (qual Proust), como exorcização da idade perdida. O desejo de um estado ideal de permanente infantilização domina a ânsia romântica jamais satisfeita. O sujeito poético constantemente procura a sua identidade – Anto, ou “o António” – é a hipertrofia do “eu” sondado às instâncias mais profundas da personalidade que leva os críticos a acusá-lo de egocentrismo. Também, a procura pelo amor puro (“A Purinha”), como idealidade nunca conseguida, nunca satisfeita, nas intermitências entre o sonho ideal do poeta e as fugas perante a insuportável realidade a que é forçado viver. Ali, é um corpo abstracto e nunca consubstanciado, como se se forçasse a aceitar a heterossexualidade indiferente. As relações de género são flexíveis, o poeta perde-se nas várias identidades. O travestismo (como dizia Mário Cláudio) é recorrente: “Oh homem egrégio! de estirpe divina, / De alma de bronze e coração de menina!”.

A “Purinha” é o sujeito poético desejado e nunca conquistado, é a inviabilidade do amor e o enigma do sexo. É a feminilidade encontrada pelos contemporâneos e acusada como um desvio antinatural, a aversão ao corpo feminino e o desejo de recolher-se ao íntimo esplendor da infância segura. O mesmo traço desviante que se manifesta na associação à histeria em “Carta a Manoel”, atribuindo a si uma patologia feminina: “Histeriza-me o Vento, absorve-me a alma toda(…)” Referência que, não sendo comum na poesia lusa, é questionável.

Os contemporâneos foram mordazes na observação. Para Pinheiro Chagas é o tom “brando e sem virilidade”, para Trindade Coelho é “a visão confrangedora de um farrapo, em lágrimas ensopado”, para Teixeira de Pascoaes é “a graça espiritual e feminina”. Associações à feminilidade e à falta de virilidade do livro são recorrentes. Um livro que seria um armário de uma homossexualidade recalcada, ou não de todo reconhecida. A sexualidade recolhe-se ao confinamento da modorra dos desejos, dos quais nem ele próprio terá descoberto o sentido.

O bromance com Alberto de Oliveira, que conhece em Coimbra, é um mesmo enigma. Da forma mais andrógena a “Purinha”, o amor socialmente consentido, converte-se no “Purinho”, o amor platónico, mas mais do que isso, o amor jamais conquistado, condenável pela sua natureza e vilipendiado:

“Há, contudo, nos usos sociais certas fórmulas de cortesia que em algumas circunstâncias se aplicam, tal a correspondência que se troca entre homem e menina. Ora o Sr. Alberto de Oliveira foi a menina da nossa correspondência. Confiado na dignidade de cada qual, enceta-se uma palestra postal que, às vezes […] acaba, um dia, e, nesse dia, se troca. Que seria ao contrário da reputação dos amorosos correspondentes? O nosso ‘‘Diário’’ está nesses casos. Seria a minha morte moral o seu conhecimento.” (Nobre 1982: 186)

Apesar de restarem poucas cartas da correspondência, a amizade amorosa de ambos é reveladora. O traço homofilo, o “amor grego”, mais platónico do que sexual, mais desejado do que consubstanciado, releva na relação entre os poetas. Nem creio que houvesse espaço para mais, depois do escândalo do Marquês de Valada e, mais tarde, com o julgamento de Oscar Wilde (1895) em Inglaterra (conhecessem explicita ou vagamente a ocorrência), a fuga às convenções sociais podia não constituir uma valia. A palavra homossexual, um neologismo cunhado em 1869, não é usada à época na literatura, como será depois no século XX, nem é expressa nos sentimentos nem nas emoções, um termo muito mais científico do que poético, diga-se, que não explica completamente as pulsões do amor nem os sentimentos da alma. A identidade homossexual é baseada nas referências filosóficas, cultivada como ascetismo, ou escondida na linguagem poética. Esse “amor que não ousa dizer o seu nome”, porque é inqualificável o sentimento que a sociedade não ousa reconhecer. Perto da alma e longe do corpo, cultivando o pathos poético na consolação das paixões, Nobre vive a distância e a amargura. Apenas concebe a idealidade permitida ao espírito elevado e não a carnalidade consumada, que é constrangida aos instintos dominados pelas impulsões. Um amor desencontrado e jamais conquistado:

“Ah! sinto agora bem quanto é grande a minha Amizade por ti, maior do que Amor, quase Adoração. […] Tu passaste a ser hoje santo da minha devoção. […] Olha, ainda há bocadinho, ao cabo do jantar, quando o criado ao servir-me chá me perguntou: ‘‘Milk also?’’ eu respondi ‘‘No’’, mas logo reflectindo, pensando em ti, tomei ‘‘Milk, yes!’’ Bebi leite e por isso me sinto tão bem: é que a tua Alma anda a ungir-me toda diluída, as minhas entranhas.” (Nobre 1982: 109)

Apaixonado, alcunha Alberto de “condezinho Tosltoi”, como imortaliza num poema, primeiro transcrito no “Só”, mas desaparecido na segunda edição, motivado pela ruptura após 1893:

Ó condezinho de Tolstoï (Alberto)
Santo da minha extrema devoção,
Alma tamanha, que adorei de perto,
Lá na Thebaida de Sr. João.

Meu Calix do Senhor! Meu Pallio aberto!
Luar branco na minha escuridão!
Ó minha Joanna d’Arc! Amigo certo
Na hora incerta! Aguia! meu irmão!

A ti as Terças-feiras, n’este Inferno,
D’aquelle que nasceu, em terça-feira
E em terça-feira morrerá, talvez…

Quando eu for morto já, noites de inverno,
Aos teus filhinhos, conta-as á lareira
Para eu ouvir de lá :
“Era uma vez…”

(Nobre 1892: 38)

Quando a bordo do navio Britannia não esconde os impulsos e, da correspondência conhecida, é onde a sexualidade se revela mais explícita, na referência à “pilinha morango” de Alberto. Aqui sobressai o contraste dominador do navio em relação à pureza singela de Alberto, a rigidez metálica de um, a angelitude do outro:

“Também te quero dizer que o Britannia nasceu em 1873, tendo pois a tua idade: sois, talvez, gêmeos, mas não sois com certeza patrícios, por que o teu corpo de Purinho, desengonçado e cor de leite, foi batizado na concha de pedra da Igreja de Santo Ildefonso, o desse monstro do Britannia, sólido e negro, tem o seu nascimento arquivado, nalguma babilónica oficina de Liverpool. Contudo, há esta coincidência mas eu não consinto que a tua pilinha morango, toque nem de leve o vergalho deste paquete.” (Nobre 1982: 116).

A idealidade romântica da Purinha ajeita-se mais ao platonismo homoerótico com Alberto de Oliveira do que à aceitação do cânone heterossexual, Agustina Bessa-Luís dirá que é o “acto de repressão de um reprimido”. António Nobre fecha-se no próprio armário, amarrando-se às convenções. Pela distância e, mais tarde, pelo abrupto fim da relação com Alberto, a sexualidade permanecerá fechada e a morte precoce para sempre encobrirá o mistério. Para a posteridade fica o enigma por interpretar, oculto na poesia de Só.

Camões e a Rússia

Camões escreveu nos versos de “Os Lusíadas”: “Entre este mar e o Tânais vive estranha/ Gente, Rutenos, Moscovos e Livónios (…)”, sugerindo o conhecimento no século XVI destes territórios a leste, conquanto ainda enigmáticos e contemplados mais na essência lírica do que com factualidade. À geografia eslava e do leste dedica outros versos do seu épico, certamente pela influência dos autores clássicos que já tinham descrito esta geografia e muito mais terá advindo do estudo de cartógrafos e geógrafos da época.


Se Camões descobriu (ainda que indirectamente) a Rússia no século XVI os homens de letras russos descobriram Camões no século XVIII. Um dos primeiros estudiosos russos de Camões foi Mikhail Lomonossov (1711-1765), presumindo-se que tenha mesmo lido o poeta no original, ainda que tal suposição pareça pouco evidente. Sabe-se, inclusive, que no século XVIII circulam já pela Rússia fragmentos prosaicos da obra de Camões. Aliás, uma das primeiras traduções russas de “Os Lusíadas” sairá exactamente em prosa, a primeira tradução poética vem à estampa apenas no século XX, na época soviética, conquanto a Segunda Guerra Mundial tenha atrasado a publicação da obra.


Outros entusiastas camonianos russos seguirão as pisadas, como M.M. Khéraskov (1733-1807) que elogia a construção épica do poema. É verdade que muitos autores ibéricos, não apenas Camões, mas Cervantes e Lope de Vega, chegam à Rússia em traduções francesas, e, com toda a certeza, Camões foi lido em francês pelos próprios estudiosos russos. A primeira tradução do poeta português para russo data de 1788, pela mão de A.I.Dmitriev, enquadrado no estilo à época observado pelos tradutores muito diferente das regras hoje cultivadas, pois os tradutores não se limitavam apenas a traduzir, mas também a recriar o estilo.


Na verdade, a atenção dedicada a Camões pelos intelectuais russos vem arreigada do espírito do tempo, o iluminismo deificava a crença do homem cidadão e patriota, qualidades reconhecidas no poeta luso. N.M.Karamzim (1766-1826), preconizador da escola pré-romântica russa, não escondia um mesmo fascínio dedicando alguns poemas ao vate inspirador da imagética romântica.


A admiração de Karamzim por Camões não ficou apenas na homenagem lírica. Em debate aceso, contrariando a ideia do pessimismo cultural de J.J.Rousseau, Karamzim prova, invocando Camões, que as ciências e as artes contribuem para o aperfeiçoamento moral do homem, escrevia: “Camões não pensou nos seus bens pessoais: atirou-se ao mar empunhando na mão direita Os Lusíadas.” Sentido igualmente invocado por Batiushlov (1787-1855) que repete as mesmas frases icónicas do amor, do patriotismo, da dedicação, do sofrimento, tanto ao gosto dos pré-românticos.


Talvez nenhum outro admirador do poeta luso tenha dedicado tanto do seu talento como o poeta Jukovski. Tal como os seus contemporâneos, Jukovski cultivou a representação romântica de Camões. O maior contributo à memória do poeta português pode ser encontrada na tradução livre ao poema de Halm, o diálogo no hospital de Lisboa entre Camões e o comerciante Vasco Mousinho de Quevedo. Na tradução ressalta uma concepção filosófico-lírica particular que anuncia a nova literatura romântica e logra uma construção lírica superior ao original pelo seu encanto estético.


O diálogo entre Camões e Quevedo tem como acção o hospital de Lisboa, no leito de morte ambos dialogam num antagonismo profundo, são visões existenciais discrepantes entre a vida do artista, lírica e apaixonada, e a existência prosaica do comerciante. Os actos praticados são destinados pela Providência, determinante no caminho que trilharam, uma concepção muito ao gosto do romantismo. O poeta é também um profeta de acordo com Jukovski , e a dádiva do talento um milagre, a vida do profeta e do poeta é uníssona, uma constante de sofrimento.
Amigo de Pushkin e seu admirador, Jukovski procura no enredo do poema encontrar paralelo com a vida dramática do autor de “O Cavaleiro de Bronze”, cujo fim trágico seria igualmente exaltado. Há aqui uma dimensão reivindicada pelo próprio poeta no mimetismo biográfico que pretende um mesmo destino no desalento do amor e na tragédia poética. Não seria a única, nem a última referência. Repetir-se-ão as mesmas ideias da constante luta entre a vida destinada do poeta e o sofrimento. Também Jukovski renega a realidade no cultivo do misticismo religioso inerente às suas ideias estéticas enquadradas na realização do ideal.


A admiração de Jukovski por Camões ficou imortalizada. No túmulo do poeta russo pode ler-se a inscrição que mandou servir de memória exactamente retirada de um seu poema intitulado “Camões”: “A poesia é Deus no sonhos sagrados da terra”.


Maior alento dedicou Pushkin (1799-1837), que, não dominando a língua portuguesa, certamente leu Camões na tradução francesa, guardando aliás maior influência dos sonetos, como revela o seu “Soneto ao Soneto” (1830) onde, invocando a imagem de Camões, “o pensamento doloroso de Camões”, estabelece um elo fulcral que o liga às origens líricas dos três maiores poetas: Dante, Petrarca e Shakespeare.


Além de inspirado pelo poeta português, foi também seu estudioso, pondo em relevo o tipo de tipologia histórica da poesia camoniana. Pushkin nega a ideia extra-histórica do iluminismo, interessava-o sobretudo o problema do drama histórico pois, segundo ele, o artista deve penetrar profundamente no espírito do povo. As notas de Pushkin aos poemas de Camões e, sobretudo, ao grande poema, “Os Lusíadas”, ainda hoje existem, e revelam o estudo e a dedicação que lhes prestava.


A literatura russa teve assim um importante contributo de Portugal e o romantismo russo muito ganhou com este contacto.


(texto publicado por mim na Nova Portugalidade)