Céline, a voz maldita

Se precisasse de traçar o protótipo do “escrito maldito” com todo o romantismo necessário para edificar a grandeza poética dos amaldiçoados então Céline estaria no Panteão dos grandes. Não sei descrever a influência que dele recebi quando o descobri na tradução do “Viagem ao Fim da Noite”. Lê-lo é mergulhar no mais obscuro da nossa identidade. Céline e Proust são a face oposta da mesma França, e diria da mesma Europa. Se Proust vagueou nos salões da aristocracia e edificou uma prosa sustentada nos prazeres mundanos, recheando cada imagem de brilhantes ritmos de poesia, Céline conduziu-nos ao mais recôndito dos becos, às ruas da classe operária, ao decadentismo do século que amargurava entre guerras, à mordaça da insatisfação que devora as almas corrompidas pelo sacrilégio do descontentamento.


Céline foi esse poeta que não cantou heróis magnânimos, nem romantizou as paixões burguesas, nem perdeu tempo com floreados para encantar as massas, mas antes o desconforto, a miséria, os vícios, a pobreza, o desalento. Não há outra tragédia que não seja errar por um mundo que parece ter perdido todo o sentido, qual promeneur solitaire arrancado de todas as grandiloquências do passado para a modorra do mundo moderno onde é reduzido a insecto, esmagado por uma civilização inconsequente.
A passagem política de Céline foi derradeira. Do lado errado da história, dirão muitos, no sentido que se posicionou do lado das forças derrotadas, como grande para da inteligência, Maurras, Brasillach, Rebatet, Drieu de la Rochelle. Tantos e tantos. A vida de Céline foi como o século XX – viveu perigosamente e radicalmente. Dançou com as forças que gravitavam na alvorada do novo mundo, protagonizando a superação da civilização burguesa, fosse o comunismo, o fascismo ou nacional-socialismo. Como o século, viveu e sucumbiu nas intempéries que devastaram o velho mundo.


Infelizmente, para muitos, Céline continuou ( e continua) vivo. Uma silhueta que assombra os arautos do politicamente correcto dos nossos dias, daqueles que pretendem, uma linguagem lavada e polida, as novilínguas dos académicos das teorias críticas e outros dislates intelectuais. Face aos novos tiranos Céline, mesmo que não se concorde completamente com todas as suas posições políticas, continua mais livre, mais vibrante, mais irreverente do que nunca. E, se passadas décadas, ele ainda continua a assombrar, a chocar, a intimidar, é porque foi sem dúvida o maior dos escritores do século XX.

Glória da diplomacia portuguesa #2: Eduardo Brazão, diplomata e historiador

Assinala-se hoje o nascimento de Eduardo Brazão. Nasceu um ano antes do regicídio (1 de Fevereiro de 1907) numa vida que perpassaria ainda dois reinados e três repúblicas. De nascimento guardava a excelência das artes e a influência das belas letras, o pai fora o grande actor também de seu nome Eduardo Brazão, imortalizado em tela por Columbano.


Monárquico, próximo ao Integralismo, não deixa de ser um livre pensador, convivendo com intelectuais dos mais diversos quadrantes. Dos tempos de estudante cruzou amizade e conhecimento com os mais talentosos nomes daquela geração, de João do Ameal, a Alfredo Pimenta e Almada Negreiros, ou o poeta Guilherme de Faria, mas também Álvaro Cunhal. Advogado com escritório em Lisboa preparou-se para ingressar na carreira diplomática. Os apontamentos de História Diplomática reuni-los-ia num volume ferido de imprecisões, que mais tarde reconheceria, e que lhe valeram um valente “puxão de orelhas” de Alfredo Pimenta. Não de todo um trabalho infrutífero, pois preparou-o para futuros escritos e estudos que o dignificariam como sumidade nas letras e na investigação histórica. Destas incursões concluiu pela necessidade em desenvolver o estudo da História Diplomática, proposta mal recebida na Faculdade de Letras e, não bastando, tanto Coimbra como Lisboa, recusam-lhe o doutoramento em História.


De resto ficou a defesa da criação de um arquivo diplomático, para salvaguardar o vasto espólio então disperso. Entretanto, chumbado no concurso de acesso à diplomacia, acabaria por ganhar uma bolsa para trabalhar no Arquivo Secreto do Vaticano, que deu o mote ao desenvolvimento historiográfico das próximas décadas. Três concursos mais tarde logra entrar no MNE, nesse período conhece Salazar do qual guardou admiração, apesar de reticente em relação à longevidade que começava a pesar face ao paradigma do pós-guerra. Ainda mal terminada a guerra foi como 2º Secretário para a Embaixada de Portugal junto da Santa Sé, iniciando a recolha de livros que alimentariam o vasto espólio bibliográfico pelo qual ficou conhecido.


Seguiu-se depois Madrid e Hong-Kong, neste último testemunhou o produto acabado da portugalidade: ali vivam 5.000 “descendentes dos primeiros portugueses estabelecidos na China” e, dado o abandono que encontrou aquela comunidade lusíada, não deixou de dedicar atenção para reatar as linhas diplomáticas que permitissem uma reaproximação cultural com a identidade que muitos julgavam perdida. Foi depois Encarregado de Negócios em Dublin (1951-55) e mais tarde ocupou a Chefia do Protocolo do Estado, que parece não ter agradado, como lamentaria nas suas memórias: “realmente surpreendido com o espectáculo da vaidade humana. Era ainda mais reles do que eu imaginava!” Conudo, não desmesuradamente, dado que da visita presidencial a Londres, que acompanhou, resultou a produção de mais uma obra fundamental: “Uma Velha Aliança”.


Por morte de António Ferro é nomeado Ministro de 1ª classe, com credenciais de embaixador em Roma. Mas, fruto de invejas, não chegará a ocupar o posto. Antes de conseguir a promoção foi enviado para o Canadá, que, apesar do desagrado inicial, não terá sido em vão. Estávamos em 1962 e Portugal era atacado na comunidade internacional pela sua defesa do ultramar. Brazão não baixou os braços em defesa dessa unidade que ele conhecia como singular. Resultaram então uma série de conferências nas Universidades de Toronto, Quebéc, Montreal, S. João da Terra Nova e Vancouver, em “defesa da Portugalidade”, explicando as particularidades da expansão portuguesa e a sua razão histórica.


Incansável no estudo e de verbo refinado coloca a pena ao serviço da historiografia nacional, como antes dele tinham feito outros insignes como o Visconde de Santarém e, ombreando no saber com outro grande contemporâneo, Franco Nogueira. Os esforços deram resultados: em 1965 está presente na inauguração de uma estátua a Gaspar Corte Real e é-lhe a atribuído o o grau de Doutor Honoris Causa em Direito. E novamente retoma a defesa do bom nome de Portugal, quando muitos contestavam a primazia da presença portuguesa na Terra Nova, dá à estampa “La découverte de Terre Neuve”, que, elogiado, passou a servir de referência no estudo da história marítima portuguesa. A que também juntou, em 1969, “Descobrimentos portugueses nas Histórias do Canadá”.


Depois de várias vicissitudes consegue ser nomeado como Embaixador para Roma, junto da Santa Sé. Num momento de grande atrito, quando Paulo VI recebe os líderes dos movimentos nacionalistas africanos de Angola, Guiné e Moçambique. Com pesar recebe as ordens do governo para protestar. Neste período aproveitou para prosseguir com os trabalhos historiográficos, concluindo as investigações relativas às relações diplomáticas de Portugal com a Santa Sé, que seria depois publicada em sete volumes.


Politicamente, preservando a ideia da monarquia como continuadora do destino de Portugal, abandona certas posições mais tradicionalistas para a moderação democrática, como escrevia, «que pudesse levar ao poder uma direita moderada». Esperançoso numa renovação marcelista, desilude-se. Entretanto o 25 de Abril apanha-o de surpresa, já prestes a abandonar Roma e, em 1975, passa a «aposentado por conveniência de serviço», assistindo com desânimo ao que foram os anos de abandono e de retração de Portugal às fronteiras do tempo de D. Afonso III. Passada a euforia revolucionária seria reabilitado, em 1983, recebendo diversas homenagens.


Homem de princípios e patriota, abnegado, entregue completamente à “causa pública”, foi além de historiador e humanista, um modelo exemplar de carácter nobre e espírito de sacrifício. Para Brazão a diplomacia é “uma das mais importantes funções que entre nós se podem desempenhar, dada a necessidade cada vez maior, do entendimento e convívio com os outros”, são palavras que ditam a paixão pelo serviço. O trabalho do diplomata não é um luxo a ser auferido, mas uma missão que deve ser conduzida com zelo e com a dedicação necessária. A esse entendimento juntava a cultura humanística que legou estudos profundos de História diplomática.


A missão do diplomata não perdia o horizonte do passado que servia de referência e modelo para compreender o presente. E, autêntico mestre, de verbo erudito, não deixava de levar a história portuguesa pelo mundo fora. Onde se apresentava na missão de defender os interesses de Portugal, levava a vasta erudição com que rendia plateias e trazia luzes num mundo cada vez mais tendente a obscurecer os feitos antigos.

Em tudo foi dedicado. Como escreveu já no final da vida: “Nunca procurei honras para mim, apenas benefícios para Portugal”.

O modernismo de Virginia Woolf

Passou um aniversário de Virginia Woolf – e quase que escapava (25 de Janeiro). Não sei dizer o quanto me influenciou quando li “Mrs Dalloway”, obra que marca o zénite criativo da autora. Ainda que “To The Lighthouse” seja reconhecido como o seu magnum opus e “The Waves” (ainda não li!) constitua um vibrante estudo que radicaliza a forma de abordar o romance. A escrita poética, a ondulação dos diálogos, a fragrância narrativa, procura explicar o mais recôndito subterfúgio da consciência e demarca um estilo, uma voz e um sentido poético característico. Não interessa a Woolf descrever a realidade de forma detalhada e “naturalista”, mas descrever o “mundo interior”, os impulsos e sentimentos que preenchem o mais íntimo da existência. Há uma realidade por detrás da realidade observável, que não é palpável, nem pode ser materializada, mas apenas sentida individualmente, uma realidade subjectiva.


Se se pretende entender a obra de V. W. é fundamental traçá-la num registo cronológico que preenche a evolução da autora da escrita tradicional ao modernismo. É o que a demarca dos romances de estreia literária (após o percurso entre jornais e publicações efémeras), com “The Voyage Out” (1915), seguido de “Night and Day” (1919), para a radicalização do estilo, em “Jacob’s Room” (1922), onde encontra a fórmula que a definirá, o “stream of consciousness” (o fluxo de consciência), cuja matriz é essencial à obra mais famosa da autora, “Mrs. Dalloway” (1925).


Não sendo uma opinião popular entre os admiradores de Woolf, gostei de ler “Orlando – a biography”, na verdade, uma carta de amor à sua amiga, e amante, a poetisa Vita Sackville-West, mas também uma reflexão sobre a condição feminina, livro preenchido de ironia e colorações de fantástico, percorrendo as ambiguidades e tragédias da natureza humana. Entendo a depreciação, ainda que injusta. Afinal, os romances mais “soft” da autora assemelham-se a um treino, um exercício de estilo onde procura afinar o traço. Os ensaios (a Room to one’s one, etc.) e os contos reúnem um conjunto fundamental na literatura modernista que juntou a qualidade poética à renovação do estilo, e soube, ao contrário dos detractores desse modernismo, tirar o melhor partido da tradição. De resto, para quem não conhece, recomendo a biografia da autora escrita pelo sobrinho Quentin Bell, que ganha por ter conhecido e privado com a autora.


(Imagem: Uma fotografia mais informal da autora e talvez não tão conhecida, Virginia Woolf com o sobrinho e futuro biógrafo, Quentin Bell).

A poesia de António Sardinha


Talvez nenhum outro doutrinador tenha exercido tanta influência quanto António Maria de Sousa Sardinha (1887-1925), ainda que sujeito, postumamente, às críticas de Alfredo Pimenta (que considerava António Sardinha um “equívoco”), e convergindo o nome do poeta de Monforte com o movimento político que animou, o Integralismo Lusitano. Nascido primeiramente como reacção estética à República e à cultura positivista de oitocentos desceu do mundo das ideias e da cultura para entrar no combate político. Neste prisma devemos considerar o movimento do Integralismo como campo onde Sardinha desenvolve o seu pathos poético sob a divisa “reaportuguesar Portugal”.

Reconhece-se na construção literária o contributo para um lirismo pátrio herdeiro dos cancioneiros de Garrett e continuador da poética de António Nobre (referência para toda uma geração). Ao contrário de Maurras, em França, Sardinha não condena o romantismo, ainda que a principal figura da Action Française, a contrario sensu, tenha também cultivado a mais refinada poesia romântica, na feliz contradição que inspirou o poeta da Provença a novamente procurar articular o classicismo com a sensibilidade moderna. O poeta lusitano reconduz-se ao caminho trilhado pelos seus antecessores líricos (Garrett, Herculano, Camilo e António Nobre). Rumou ao passado de Portugal, à tradição herdada dos cancioneiros medievais e das antigas cantigas populares, procurando no registo da oralidade a valorização da diversidade cultural contrária à unidade numérica democrática, que descobre um certo aristocracismo popular contrário ao “homem massa” da civilização contemporânea.

Em atenção, talvez sublinhar que o livro “A Epopeia da Planície”, publicado em 1915, não consubstancia um título maior da poesia portuguesa, por muito ensejo em recuperar Sardinha no panteão da letras lusitanas, porém não deixa de demarcar uma característica particular no conjunto literário do início do século XX. Afinal, Sardinha não será o maior dos poetas portugueses, mas é certamente o mais português de todos eles. Nos versos é possível encontrar a voz comum que prevalece enquanto coro que reporta em seu âmago o sofrimento da própria paisagem do Alentejo, uma construção que rejeita a abstração moderna em prol do concreto, que procura a riqueza dos pequenos elementos conferindo-lhes um identidade épica. Submerso na coloquialidade entendida na absorção mística do passado, o poeta, do alto da “torre de Ramires”, contempla a genealogia da paisagem enquanto reportório da história portuguesa: “e num cortejo lento, lento, passa, / se tu, visão humana, não me iludes, / o desfilar brumoso da Ascendência. / Figuras graves, graves atitudes, / deslizam com cadência. (…)”.

Numa primeira linha, a opção por uma lírica popular pode ser entendida enquanto subterfúgio a correntes estéticas experimentalistas, produto do sentimento de repulsa face à modernidade, preferindo recolher o espírito às contemplações do campo (afinal, a planície do Alentejo); ou, numa segunda leitura, podíamos entender que, ao ousar colher dessa tradição o seu húmus mais densificante, i.e., a sua essência enquanto identificadora de uma cultura nacional, António Sardinha contribui para inovar a literatura portuguesa que, pelas influências do positivismo e do racionalismo do século XIX, se estrangeirara, ignorando as raízes da cultura nacional.

Não constituí de todo um anacronismo estético, também Fernando Pessoa homenageia a lírica lusa em “Cancioneiro” e “Quadras ao gosto popular”, António Nobre já o preconizara antes, como Afonso Lopes Vieira enseja na mesma dimensionalidade. Os poetas de entre guerras coabitam uma época desejosa de remexer o solo português e dele extrair elementos que preencham a modernidade. Entendem que o “moderno” não parte do vácuo obscuro, mas resulta de um encontro com a voz dos antepassados. A tradição é também o diálogo intemporal do homem, nas palavras de Chesterton, “uma democracia dos mortos”, porque é a súmula do acordo estabelecido entre aqueles que já viveram, os que estão vivos e os que estão para nascer, o mesmo sentido que configurara a grande arte de T.S.Eliot, Ezra Pound e do primeiro modernismo, i.e., a aliança entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo, porque o progresso não pode avançar sem a lição dos séculos. Dificilmente, ou de forma tão linear, Sardinha integraria esse grupo de forma tão completa, mesmo na compleição da radicalidade. A vitalidade fica-se pelas primícias que a vanguarda estética impulsiona, contudo, não alcança a mesma repercussão em estilo, nem em matéria.

Não é uma poesia que preencha o gosto universalista das vanguardas, certamente, nem pretende muralhar a arte em torno da abstracção, mas entende que a cultura popular é mais complexa do que a mera simplificação das fórmulas. No poema “O louvor do sal” encontramos a objectividade lírica coabitada entre a significação do elementar e do sagrado: “Ó sal, pedrinha estimada/ que vais à mesa do rey/ não te conheço soberbas/ por isso te louvarei”. Se ainda ingénuo na fórmula, vem da influência dos ritmos populares, conferindo-lhe singular musicalidade, também identificável nos coros monasteriais e no canto alentejano: “Pode na casa do pobre/ não haver luz, faltar pão,/andar por fóra a saúde/ mas lá o sal é que não!” Não pretende intelectualizar, mas apenas referenciar o quotidiano, o simples e o singelo, aquilo que é perceptível e conhecido ao próprio povo, sem necessidade da grandiloquência poética ou estabelecer analogias filosóficas. Os objectos constroem a realidade rural e cristã onde cada elemento se perpetua na continuidade de um horizonte infinito de renovação: “E os carros voltam. Voltam com o trigo. / Não sei que génio antigo / me acode ao avistá-los em cortejo! / Minh’ alma sobe ao longo das idades. / Que estranhas divindades / são essas que me falam, quando os vejo?” (“Geórgica da Colheita”).

O poeta não pretende radicalizar a fórmula mas apenas reconduzi-la à sua genuinidade, não pretende o superlativo, mas o essencial. Coabita inexorável o reencontro com a voz do passado. Na bidimensionalidade que preenche os elementos artísticos também reencontra o poeta a sua paisagem “interior” em contraposição à paisagem “exterior”, como também referia Fernando Pessoa: dois uníssonos reconduzidos à essência da qual resultará a arte. Neste entendimento, há uma realidade exterior, descrita pelo poeta, identificada nas próprias raízes nacionais e na espiritualidade, que se confunde com o subconsciente poético do autor. É a “tradição do novo” (Rosenberg) que impede a arte de cair na repetição inconsequente, no cliché inusitado sem poder para se libertar da sua banalidade. Reclinado para esse sentido onírico o poeta assume-se também como visionário: o espírito do passado desfila nas paisagens do presente. Entoa, entre redondilhas e ladainhas, o congraçamento entre o realismo da paisagem, unido, evidentemente, à própria história portuguesa.

Mas “A Epopeia da Planície” não pretende apenas a experimentalidade estética, na essência o poeta reporta-se ao canto do povo humilde, do horizonte alentejano, em suma: é a epopeia do reencontro com a tradição popular. Glorifica um todo cultural e não um ente singular identificável, não há um herói que não seja a própria paisagem, ou a própria pedra talhada pelo homem. É a voz anónima do povo, o homem do campo, habitante da grande planície, quem vem novamente reivindicar a sua voz. Também no poema “Évora-cidade” sustém esse suspiro: “Atrás do arado,/ a raça canta sempre e ainda espera. (…)// E a Raça canta a moirejar p’la vida./ Honrada e scismadora/ Embala-se no ópio do horizonte (…).”

A expressão “Valor da raça”, tão cara ao integralismo, e fonte de tantas confusões, vinha identificar a “Verdade Portuguesa”. Para compreender o pensamento de Sardinha é necessário ler a palavra “raça” enquanto “Grey”, extraído naturalmente do ex libris de D.João II (Pola Ley, Pola Grey), nas palavras do poeta: “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino”. Numa mesma acepção tal ideia pode ser encontrada na filosofia tomista e vem novamente o poeta declarar: “as instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue-se-lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência”.

O poeta não deixa de sentir a força do passado, mas a saudade (elemento intrínseco à alma lusitana) não deve ser confundida com o “saudosismo”. Muitos poderão encontrar no substracto lírico uma identificação de António Sardinha com o Saudosismo de Pascoaes. Contudo, a veia nostálgica de Pascoaes não se coaduna completamente com o espírito tradicionalista e revolucionário de António Sardinha, como também escreve o poeta: “(…)a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade (…)” e finalmente confronta o ‘saudosismo’ de Pascoaes: “Resulta daí que a Esperança, – e não a Saudade, – é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.” (Carta a Luís de Almeida Braga, 1913).

Sardinha não invoca qualquer passadismo: não verte lágrimas sobre uma grandeza perdida, pelo contrário, aguarda ansioso por uma grandeza futura. Afirma-se, sobretudo, como tradicionalista, descobrindo na tradição uma “continuidade interminável”, e não um “ponto imóvel no passado (…) renovando-se sempre”, será de forma ineliminável (como escreveu em “O Valor da Raça (1915))”: «um retorno ao fio interrompido da história».

Afonso Lopes Vieira, poeta da Portugalidade

Afonso Lopes Vieira, por Columbano Bordalo Pinheiro (1910).

Afonso Lopes Vieira foi poeta de fino e delicado traço, um príncipe das letras que quis novamente devolver à literatura o seu carácter primordial roubado às cantigas medievais e à essência romântica antes vivida em Garrett e António Nobre. Foi o esteta popular por excelência, inspirado pelo intuito de regressar às origens da pátria. Achava ele que a missão do poeta era “dar uma soberba lição de história e de patriotismo aos que amanhã hão de ser os dirigentes de Portugal”.


Foi um poeta ecléctico, que em jovem traduziu a obra do anarquista russo Kropotkine. Também monárquico que desafiou as repúblicas, com obra apreendida quer na Primeira República, com o poema “Ao Soldado Desconhecido”(1925) e cuja consequência acabou por ser a prisão; quer no Estado Novo, com o poema “Éclogas de Agora” (1935), no que viria a ficar anos depois conhecida como “poesia de resistência”. Católico por educação, não deixou de ser um panteísta. Monárquico, não deixou de colaborar com os “seareiros” na revista “Homens Livres”. Foi em tudo um paradoxo.


Ficou na memória um episódio que não pude deixar de assinalar, aquando da prisão do comandante Henrique Paiva Couceiro. Em 1937, Hipólito Raposo foi também preso, alegadamente porque ia de visita a Paiva Couceiro. Lopes Vieira deslocou-se ao local, por sua vez, perguntando, de forma provocatória, ao dito guarda «se era ali que prendiam os que perguntavam pelo Comandante». Valeu-lhe então 15 dias de prisão. Mas o poeta monárquico sabia o que a luta custava e não dava o braço a torcer.