Os Lusíadas

“Esse poema [Os Lusíadas] ficou como o nosso principal monumento literário, uma espécie de Bíblia nacional, que foi em várias épocas, lido e ensinado nas escolas (…) e que ficou, sobretudo, como o padrão de glórias passadas, a meu ver, talvez, injustamente. Não podemos ver em “Os Lusíadas”, propriamente, a parte fúnebre, i.e., “Os Lusíadas” não são o sarcófago, mas sim a corrente de vida que nele existe.
Não devemos ver em “Os Lusíadas” aquilo que nós fomos, mas aquilo que somos permanentemente. Não as coisas que o português fez, mas sim a própria acção que o português tem desenvolvido, de formas diferentes, conforme as épocas: uma acção guerreira e colonizadora, na época própria, na época das conquistas e expansão da Europa, e também uma acção que pode continuar a manifestar-se em circunstancias diferentes, sem ser guerreia e sem ser conquistadora, como é próprio da nossa época. É o próprio fluir da vida portuguesa, que parece que deve ser captado em “Os Lusíadas.”

(António José Saraiva fala sobre Camões no Convento de Cristo (1978))

*Hoje assinalam-se os 450 da publicação de “Os Lusíadas”.

A poesia de António Sardinha


Talvez nenhum outro doutrinador tenha exercido tanta influência quanto António Maria de Sousa Sardinha (1887-1925), ainda que sujeito, postumamente, às críticas de Alfredo Pimenta (que considerava António Sardinha um “equívoco”), e convergindo o nome do poeta de Monforte com o movimento político que animou, o Integralismo Lusitano. Nascido primeiramente como reacção estética à República e à cultura positivista de oitocentos desceu do mundo das ideias e da cultura para entrar no combate político. Neste prisma devemos considerar o movimento do Integralismo como campo onde Sardinha desenvolve o seu pathos poético sob a divisa “reaportuguesar Portugal”.

Reconhece-se na construção literária o contributo para um lirismo pátrio herdeiro dos cancioneiros de Garrett e continuador da poética de António Nobre (referência para toda uma geração). Ao contrário de Maurras, em França, Sardinha não condena o romantismo, ainda que a principal figura da Action Française, a contrario sensu, tenha também cultivado a mais refinada poesia romântica, na feliz contradição que inspirou o poeta da Provença a novamente procurar articular o classicismo com a sensibilidade moderna. O poeta lusitano reconduz-se ao caminho trilhado pelos seus antecessores líricos (Garrett, Herculano, Camilo e António Nobre). Rumou ao passado de Portugal, à tradição herdada dos cancioneiros medievais e das antigas cantigas populares, procurando no registo da oralidade a valorização da diversidade cultural contrária à unidade numérica democrática, que descobre um certo aristocracismo popular contrário ao “homem massa” da civilização contemporânea.

Em atenção, talvez sublinhar que o livro “A Epopeia da Planície”, publicado em 1915, não consubstancia um título maior da poesia portuguesa, por muito ensejo em recuperar Sardinha no panteão da letras lusitanas, porém não deixa de demarcar uma característica particular no conjunto literário do início do século XX. Afinal, Sardinha não será o maior dos poetas portugueses, mas é certamente o mais português de todos eles. Nos versos é possível encontrar a voz comum que prevalece enquanto coro que reporta em seu âmago o sofrimento da própria paisagem do Alentejo, uma construção que rejeita a abstração moderna em prol do concreto, que procura a riqueza dos pequenos elementos conferindo-lhes um identidade épica. Submerso na coloquialidade entendida na absorção mística do passado, o poeta, do alto da “torre de Ramires”, contempla a genealogia da paisagem enquanto reportório da história portuguesa: “e num cortejo lento, lento, passa, / se tu, visão humana, não me iludes, / o desfilar brumoso da Ascendência. / Figuras graves, graves atitudes, / deslizam com cadência. (…)”.

Numa primeira linha, a opção por uma lírica popular pode ser entendida enquanto subterfúgio a correntes estéticas experimentalistas, produto do sentimento de repulsa face à modernidade, preferindo recolher o espírito às contemplações do campo (afinal, a planície do Alentejo); ou, numa segunda leitura, podíamos entender que, ao ousar colher dessa tradição o seu húmus mais densificante, i.e., a sua essência enquanto identificadora de uma cultura nacional, António Sardinha contribui para inovar a literatura portuguesa que, pelas influências do positivismo e do racionalismo do século XIX, se estrangeirara, ignorando as raízes da cultura nacional.

Não constituí de todo um anacronismo estético, também Fernando Pessoa homenageia a lírica lusa em “Cancioneiro” e “Quadras ao gosto popular”, António Nobre já o preconizara antes, como Afonso Lopes Vieira enseja na mesma dimensionalidade. Os poetas de entre guerras coabitam uma época desejosa de remexer o solo português e dele extrair elementos que preencham a modernidade. Entendem que o “moderno” não parte do vácuo obscuro, mas resulta de um encontro com a voz dos antepassados. A tradição é também o diálogo intemporal do homem, nas palavras de Chesterton, “uma democracia dos mortos”, porque é a súmula do acordo estabelecido entre aqueles que já viveram, os que estão vivos e os que estão para nascer, o mesmo sentido que configurara a grande arte de T.S.Eliot, Ezra Pound e do primeiro modernismo, i.e., a aliança entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo, porque o progresso não pode avançar sem a lição dos séculos. Dificilmente, ou de forma tão linear, Sardinha integraria esse grupo de forma tão completa, mesmo na compleição da radicalidade. A vitalidade fica-se pelas primícias que a vanguarda estética impulsiona, contudo, não alcança a mesma repercussão em estilo, nem em matéria.

Não é uma poesia que preencha o gosto universalista das vanguardas, certamente, nem pretende muralhar a arte em torno da abstracção, mas entende que a cultura popular é mais complexa do que a mera simplificação das fórmulas. No poema “O louvor do sal” encontramos a objectividade lírica coabitada entre a significação do elementar e do sagrado: “Ó sal, pedrinha estimada/ que vais à mesa do rey/ não te conheço soberbas/ por isso te louvarei”. Se ainda ingénuo na fórmula, vem da influência dos ritmos populares, conferindo-lhe singular musicalidade, também identificável nos coros monasteriais e no canto alentejano: “Pode na casa do pobre/ não haver luz, faltar pão,/andar por fóra a saúde/ mas lá o sal é que não!” Não pretende intelectualizar, mas apenas referenciar o quotidiano, o simples e o singelo, aquilo que é perceptível e conhecido ao próprio povo, sem necessidade da grandiloquência poética ou estabelecer analogias filosóficas. Os objectos constroem a realidade rural e cristã onde cada elemento se perpetua na continuidade de um horizonte infinito de renovação: “E os carros voltam. Voltam com o trigo. / Não sei que génio antigo / me acode ao avistá-los em cortejo! / Minh’ alma sobe ao longo das idades. / Que estranhas divindades / são essas que me falam, quando os vejo?” (“Geórgica da Colheita”).

O poeta não pretende radicalizar a fórmula mas apenas reconduzi-la à sua genuinidade, não pretende o superlativo, mas o essencial. Coabita inexorável o reencontro com a voz do passado. Na bidimensionalidade que preenche os elementos artísticos também reencontra o poeta a sua paisagem “interior” em contraposição à paisagem “exterior”, como também referia Fernando Pessoa: dois uníssonos reconduzidos à essência da qual resultará a arte. Neste entendimento, há uma realidade exterior, descrita pelo poeta, identificada nas próprias raízes nacionais e na espiritualidade, que se confunde com o subconsciente poético do autor. É a “tradição do novo” (Rosenberg) que impede a arte de cair na repetição inconsequente, no cliché inusitado sem poder para se libertar da sua banalidade. Reclinado para esse sentido onírico o poeta assume-se também como visionário: o espírito do passado desfila nas paisagens do presente. Entoa, entre redondilhas e ladainhas, o congraçamento entre o realismo da paisagem, unido, evidentemente, à própria história portuguesa.

Mas “A Epopeia da Planície” não pretende apenas a experimentalidade estética, na essência o poeta reporta-se ao canto do povo humilde, do horizonte alentejano, em suma: é a epopeia do reencontro com a tradição popular. Glorifica um todo cultural e não um ente singular identificável, não há um herói que não seja a própria paisagem, ou a própria pedra talhada pelo homem. É a voz anónima do povo, o homem do campo, habitante da grande planície, quem vem novamente reivindicar a sua voz. Também no poema “Évora-cidade” sustém esse suspiro: “Atrás do arado,/ a raça canta sempre e ainda espera. (…)// E a Raça canta a moirejar p’la vida./ Honrada e scismadora/ Embala-se no ópio do horizonte (…).”

A expressão “Valor da raça”, tão cara ao integralismo, e fonte de tantas confusões, vinha identificar a “Verdade Portuguesa”. Para compreender o pensamento de Sardinha é necessário ler a palavra “raça” enquanto “Grey”, extraído naturalmente do ex libris de D.João II (Pola Ley, Pola Grey), nas palavras do poeta: “a concepção jurídica dum todo uno idêntico na composição e no destino”. Numa mesma acepção tal ideia pode ser encontrada na filosofia tomista e vem novamente o poeta declarar: “as instituições dum país são a criação do seu génio. Tal é o mandamento a arvorar como primacial artigo da nossa fé. Segue-se-lhe o valor da Raça como razão indiscutível de existência”.

O poeta não deixa de sentir a força do passado, mas a saudade (elemento intrínseco à alma lusitana) não deve ser confundida com o “saudosismo”. Muitos poderão encontrar no substracto lírico uma identificação de António Sardinha com o Saudosismo de Pascoaes. Contudo, a veia nostálgica de Pascoaes não se coaduna completamente com o espírito tradicionalista e revolucionário de António Sardinha, como também escreve o poeta: “(…)a resistência lírica da Raça, traduzida na concepção reparadora do mito sebástico. Ora eu procuro traçar o desenvolvimento destes dois insofismáveis agentes da autêntica consciência nacional desde a nossa remota ancestralidade (…)” e finalmente confronta o ‘saudosismo’ de Pascoaes: “Resulta daí que a Esperança, – e não a Saudade, – é o grande renovador e mantenedor do génio lusitano.” (Carta a Luís de Almeida Braga, 1913).

Sardinha não invoca qualquer passadismo: não verte lágrimas sobre uma grandeza perdida, pelo contrário, aguarda ansioso por uma grandeza futura. Afirma-se, sobretudo, como tradicionalista, descobrindo na tradição uma “continuidade interminável”, e não um “ponto imóvel no passado (…) renovando-se sempre”, será de forma ineliminável (como escreveu em “O Valor da Raça (1915))”: «um retorno ao fio interrompido da história».

Afonso Lopes Vieira, poeta da Portugalidade

Afonso Lopes Vieira, por Columbano Bordalo Pinheiro (1910).

Afonso Lopes Vieira foi poeta de fino e delicado traço, um príncipe das letras que quis novamente devolver à literatura o seu carácter primordial roubado às cantigas medievais e à essência romântica antes vivida em Garrett e António Nobre. Foi o esteta popular por excelência, inspirado pelo intuito de regressar às origens da pátria. Achava ele que a missão do poeta era “dar uma soberba lição de história e de patriotismo aos que amanhã hão de ser os dirigentes de Portugal”.


Foi um poeta ecléctico, que em jovem traduziu a obra do anarquista russo Kropotkine. Também monárquico que desafiou as repúblicas, com obra apreendida quer na Primeira República, com o poema “Ao Soldado Desconhecido”(1925) e cuja consequência acabou por ser a prisão; quer no Estado Novo, com o poema “Éclogas de Agora” (1935), no que viria a ficar anos depois conhecida como “poesia de resistência”. Católico por educação, não deixou de ser um panteísta. Monárquico, não deixou de colaborar com os “seareiros” na revista “Homens Livres”. Foi em tudo um paradoxo.


Ficou na memória um episódio que não pude deixar de assinalar, aquando da prisão do comandante Henrique Paiva Couceiro. Em 1937, Hipólito Raposo foi também preso, alegadamente porque ia de visita a Paiva Couceiro. Lopes Vieira deslocou-se ao local, por sua vez, perguntando, de forma provocatória, ao dito guarda «se era ali que prendiam os que perguntavam pelo Comandante». Valeu-lhe então 15 dias de prisão. Mas o poeta monárquico sabia o que a luta custava e não dava o braço a torcer.

Vida e Mistério de António Nobre

António Nobre teve o destino dos poetas. Como os melhores, Cesário Verde ou Mário de Sá Carneiro, Byron ou Shelley, desaparece no momento em que a idade é pródiga em desvelar o talento. O fascinante não está na curta biografia, mas na obra produzida. Em vida publicou apenas um livro, Só, nas palavras do vate, o “livro mais triste que há em Portugal”. A poética esconde muito do pathos existencial arreigado às vicissitudes de uma personalidade extasiada no sofrimento. A própria intimidade permaneceu obscurecida num sarcófago. Não que interesse – mas interessa! – conhecer o leito dos poetas, ou os armários onde se trancaram, mas, ainda que não explique completamente a obra, ajuda a entendê-la e a descodificá-la.

A poesia de Nobre preenche o vago das paixões, os últimos suspiros da puberdade e o reconhecimento e rejeição da adultez emergente. Mas a maior curiosidade prende-se em relação à sua sexualidade. A feminilidade constituiu o opróbrio da crítica, sem que o próprio talvez pudesse, mesmo que conscientemente, entender ou explorar de forma completa esses desejos, e não apenas na figuração pusilanime, quase infantil, de inspirações amorosas inconsequentes e nunca consumadas ou mesmo conhecidas.

Os estudos mal-conseguidos em Coimbra fortalecem a amargura que arrastará para as ruas de Paris, onde se matricula na Sorbonne e consegue o que Coimbra lhe negara, um diploma em Direito. O exílio francês inspira um dos mais belos poemas, “Lusitânia no bairro latino” (referindo-se ao Quartier Latin onde viveu como estudante). Realmente, o único exílio de Nobre é ele próprio. A mudança de geografia representa uma evolução, da influência de Garrett, primeiro, ao simbolismo de Verlaine e Baudelaire, depois. Inspirado e espontâneo, tradicional e moderno, procura pela identidade portuguesa, no tom coloquial e popular, como se constantemente transportasse a pátria às costas e jamais se libertasse da mesma letargia. Como todos os “exilados” retém sentimentos paradoxais, entre o amor e o ódio à terra que o viu nascer, confessando que “desgraça nascer em Portugal”, ou o “Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó.”

Em vários momentos ressalta a memória da infância (qual Proust), como exorcização da idade perdida. O desejo de um estado ideal de permanente infantilização domina a ânsia romântica jamais satisfeita. O sujeito poético constantemente procura a sua identidade – Anto, ou “o António” – é a hipertrofia do “eu” sondado às instâncias mais profundas da personalidade que leva os críticos a acusá-lo de egocentrismo. Também, a procura pelo amor puro (“A Purinha”), como idealidade nunca conseguida, nunca satisfeita, nas intermitências entre o sonho ideal do poeta e as fugas perante a insuportável realidade a que é forçado viver. Ali, é um corpo abstracto e nunca consubstanciado, como se se forçasse a aceitar a heterossexualidade indiferente. As relações de género são flexíveis, o poeta perde-se nas várias identidades. O travestismo (como dizia Mário Cláudio) é recorrente: “Oh homem egrégio! de estirpe divina, / De alma de bronze e coração de menina!”.

A “Purinha” é o sujeito poético desejado e nunca conquistado, é a inviabilidade do amor e o enigma do sexo. É a feminilidade encontrada pelos contemporâneos e acusada como um desvio antinatural, a aversão ao corpo feminino e o desejo de recolher-se ao íntimo esplendor da infância segura. O mesmo traço desviante que se manifesta na associação à histeria em “Carta a Manoel”, atribuindo a si uma patologia feminina: “Histeriza-me o Vento, absorve-me a alma toda(…)” Referência que, não sendo comum na poesia lusa, é questionável.

Os contemporâneos foram mordazes na observação. Para Pinheiro Chagas é o tom “brando e sem virilidade”, para Trindade Coelho é “a visão confrangedora de um farrapo, em lágrimas ensopado”, para Teixeira de Pascoaes é “a graça espiritual e feminina”. Associações à feminilidade e à falta de virilidade do livro são recorrentes. Um livro que seria um armário de uma homossexualidade recalcada, ou não de todo reconhecida. A sexualidade recolhe-se ao confinamento da modorra dos desejos, dos quais nem ele próprio terá descoberto o sentido.

O bromance com Alberto de Oliveira, que conhece em Coimbra, é um mesmo enigma. Da forma mais andrógena a “Purinha”, o amor socialmente consentido, converte-se no “Purinho”, o amor platónico, mas mais do que isso, o amor jamais conquistado, condenável pela sua natureza e vilipendiado:

“Há, contudo, nos usos sociais certas fórmulas de cortesia que em algumas circunstâncias se aplicam, tal a correspondência que se troca entre homem e menina. Ora o Sr. Alberto de Oliveira foi a menina da nossa correspondência. Confiado na dignidade de cada qual, enceta-se uma palestra postal que, às vezes […] acaba, um dia, e, nesse dia, se troca. Que seria ao contrário da reputação dos amorosos correspondentes? O nosso ‘‘Diário’’ está nesses casos. Seria a minha morte moral o seu conhecimento.” (Nobre 1982: 186)

Apesar de restarem poucas cartas da correspondência, a amizade amorosa de ambos é reveladora. O traço homofilo, o “amor grego”, mais platónico do que sexual, mais desejado do que consubstanciado, releva na relação entre os poetas. Nem creio que houvesse espaço para mais, depois do escândalo do Marquês de Valada e, mais tarde, com o julgamento de Oscar Wilde (1895) em Inglaterra (conhecessem explicita ou vagamente a ocorrência), a fuga às convenções sociais podia não constituir uma valia. A palavra homossexual, um neologismo cunhado em 1869, não é usada à época na literatura, como será depois no século XX, nem é expressa nos sentimentos nem nas emoções, um termo muito mais científico do que poético, diga-se, que não explica completamente as pulsões do amor nem os sentimentos da alma. A identidade homossexual é baseada nas referências filosóficas, cultivada como ascetismo, ou escondida na linguagem poética. Esse “amor que não ousa dizer o seu nome”, porque é inqualificável o sentimento que a sociedade não ousa reconhecer. Perto da alma e longe do corpo, cultivando o pathos poético na consolação das paixões, Nobre vive a distância e a amargura. Apenas concebe a idealidade permitida ao espírito elevado e não a carnalidade consumada, que é constrangida aos instintos dominados pelas impulsões. Um amor desencontrado e jamais conquistado:

“Ah! sinto agora bem quanto é grande a minha Amizade por ti, maior do que Amor, quase Adoração. […] Tu passaste a ser hoje santo da minha devoção. […] Olha, ainda há bocadinho, ao cabo do jantar, quando o criado ao servir-me chá me perguntou: ‘‘Milk also?’’ eu respondi ‘‘No’’, mas logo reflectindo, pensando em ti, tomei ‘‘Milk, yes!’’ Bebi leite e por isso me sinto tão bem: é que a tua Alma anda a ungir-me toda diluída, as minhas entranhas.” (Nobre 1982: 109)

Apaixonado, alcunha Alberto de “condezinho Tosltoi”, como imortaliza num poema, primeiro transcrito no “Só”, mas desaparecido na segunda edição, motivado pela ruptura após 1893:

Ó condezinho de Tolstoï (Alberto)
Santo da minha extrema devoção,
Alma tamanha, que adorei de perto,
Lá na Thebaida de Sr. João.

Meu Calix do Senhor! Meu Pallio aberto!
Luar branco na minha escuridão!
Ó minha Joanna d’Arc! Amigo certo
Na hora incerta! Aguia! meu irmão!

A ti as Terças-feiras, n’este Inferno,
D’aquelle que nasceu, em terça-feira
E em terça-feira morrerá, talvez…

Quando eu for morto já, noites de inverno,
Aos teus filhinhos, conta-as á lareira
Para eu ouvir de lá :
“Era uma vez…”

(Nobre 1892: 38)

Quando a bordo do navio Britannia não esconde os impulsos e, da correspondência conhecida, é onde a sexualidade se revela mais explícita, na referência à “pilinha morango” de Alberto. Aqui sobressai o contraste dominador do navio em relação à pureza singela de Alberto, a rigidez metálica de um, a angelitude do outro:

“Também te quero dizer que o Britannia nasceu em 1873, tendo pois a tua idade: sois, talvez, gêmeos, mas não sois com certeza patrícios, por que o teu corpo de Purinho, desengonçado e cor de leite, foi batizado na concha de pedra da Igreja de Santo Ildefonso, o desse monstro do Britannia, sólido e negro, tem o seu nascimento arquivado, nalguma babilónica oficina de Liverpool. Contudo, há esta coincidência mas eu não consinto que a tua pilinha morango, toque nem de leve o vergalho deste paquete.” (Nobre 1982: 116).

A idealidade romântica da Purinha ajeita-se mais ao platonismo homoerótico com Alberto de Oliveira do que à aceitação do cânone heterossexual, Agustina Bessa-Luís dirá que é o “acto de repressão de um reprimido”. António Nobre fecha-se no próprio armário, amarrando-se às convenções. Pela distância e, mais tarde, pelo abrupto fim da relação com Alberto, a sexualidade permanecerá fechada e a morte precoce para sempre encobrirá o mistério. Para a posteridade fica o enigma por interpretar, oculto na poesia de Só.